estradas perdidas

Atrás de casa, encoberta por tufos de erva daninha, silvas e bidões abandonados, o comboio de janelas iluminadas vinha das Quintãs e silvou depois do túnel em curva, em direcção a Aveiro. Ali ao lado há uma estrada, a minha primeira estrada. Mulheres e homens cruzam-na impelindo teimosamente os pedais das bicicletas. Junto à vitrine de um pronto-a-vestir lê-se "Modas Katita". De uma taberna, saem dois homens que se dirigem para duas Famel-Zundapp. Estrada perdida.

2004-10-31

JÚLIO SEBASTIÃO, DAGORDA, JULHO DE 91


Esta foto tem mais de 13 anos e traz-me uma carrada de memórias. O Júlio Sebastião olhava para o meu bloco de notas que eu escrevinhava com o nervosismo de um estagiário. Foi num corte de estradas dos agricultores do Oeste, na Dagorda, perto de Óbidos e já não me lembro quem tirou a fotografia. O Júlio era uma figura. Uma vez ofereceu-me a mim e ao Pedro Cunha duas caixas de pêra rocha. Chamavam-lhe o Che Guevara do Bombarral. Onde quer que estejas Júlio, à tua saúde! A noite mais longa da Dagorda

Memórias da Dagorda, Julho de 91:

Há um filme com Matt Dillon a passar no ecrã a cores da taberna do Eusébio, na Dagorda, perto de Óbidos, onde pela terceira noite consecutiva os agricultores não deixam circular o tráfego automóvel. Em cima da TV, uma ventoinha roda lentamente da esquerda para a direita. Ao fundo, alinham-se garrafas de Macieira e Aguardente velha. A animação na sala da taberna, bem na esquina do cruzamento da Dagorda, gira em torno da velha cabine de madeira onde durante todo o dia de quarta-feira foi possível ver a figura atarracada do carismático Júlio Sebastião a atender chamadas após chamadas.
“Estou? Posto Público da Dagorda, quem fala?” Muitas vezes, na confusão dos inúmeros depoimentos, já não se sabe com quem está a falar. “Quem era?”, perguntam-lhe. “Eh pá, já nem sei, era de um jornal qualquer”. Júlio é visto a falar com a mesma convicção com o gabinete do ministro ou com um jornalista de uma rádio local.
À noite, em círculos bem determinados, longe dos tractores e dos agricultores, habitantes da Dagorda dão largas à sua indignação. “Esse barbas, esse cabecilha que aí anda, ele é o culpado disto tudo...atão há lá direito de não deixarem saír uma camioneta cheia de gasolina. O homem ‘teve aí desde segunda-feira sem poder passar”.
Outro comenta: “há-de valer-lhes de muito. O ministro alguma vez vinha à Dagorda? Primeiro era preciso descobrir onde isto fica no mapa”. O corte de carvalhos e plátanos para barrar a estrada não foi do seu agrado. “Cortaram uma árvore com 200 anos, atão há lá direito? Botavam lá umas pedras...”
Para os habitantes da Dagorda, o bloqueio da estrada representou um corte radical com a rotina diária. “Onde é que começa a guerra?”, perguntava alegremente um grupo de rapazes que passava o enorme carvalho a barrar a estrada do lado de Óbidos.
Alguns agricultores, estirados à porta das casas ou encostados aos tractores, apresentavam cansaço e desânimo. “Estamos saturados e lamentamos a maneira como sempre o governo nos trata nestas coisas”, afirmava um agricultor que pediu o anonimato. “O governo quando entrou para a UE devia ter alertado os agricultores”.
Por volta da meia noite, Júlio Sebastião dirige-se ao microfone do velho peugeot cinzento dos altifalantes e pede ânimo aos agricultores. “Esta noite, vai ser a mais longa da minha vida. A minha voz está a ficar cansada mas espero que ainda dê para amanhã (ontem) nas negociações de Lisboa. Muito obrigado e boa noite a todos”.
Na taberna do senhor Eusébio, que só encerrará lá para as quatro da manhã, o movimento não para. Os proprietários, que já tinham o estabelecimento encerrado desde domingo para gozo de férias, viram-se compelidos a reabri-lo. Os agricultores obrigaram-nos a abrir o café?, perguntamos. “Não”, responde a proprietária, debruçada no parapeito da janela onde lhe pedem constantemente copos de vinho e cervejas. “Só nos disseram: Têm de abrir que a gente está a morrer de sede. A gente abriu.”
Na televisão do estabelecimento, o “24 horas” mostra um mapa de Portugal com os pontos onde as estradas estão cortadas. A sala enche-se, Júlio Sebastião pede silêncio. Há em todos uma alegria mal contida.
Correm rumores, mais uma vez, de que a polícia de intervenção teria sido avistada junto ao cruzamento de Óbidos. Outros contam que nove jeeps da GNR teriam sido vistos a atravessar as Caldas da Rainha. Outros ainda falam em cortar a estrada nacional Lisboa-Porto. Como sempre, estes rumores carecem de confirmação.
“Isto é melhor do que ir ao cinema, pode crer” afirma um bem disposto observador, habitante na povoação, sentado na mesa do canto da taberna.
Os agricultores juntam-se perto dos transístores, para ouvirem as notícias sobre outros cortes de estrada pelo país. “Ouvimos agora que cortaram a estrada em Santo Tirso e em Famalicão”, diz alguém ao microfone. Suados, extenuados, muitas vezes de garrafa na mão, esforçando-se para se manter acordados na terceira noite de bloqueio, alguns agricultores dão largas ao seu descontentamento. “Ao menos que peguem numa metralhadora e matem a gente duma vez. É melhor do que andarem a matar a gente a pouco e pouco”.
Junta-se um grupo de três homens do campo. “É gasóleo, é juros, é o preço que baixa no produtor para subir no consumidor, é uma vergonha”, lamentam. Falam-nos do leite que é vendido a 47,50 pelo produtor e é vendido nas lojas a 140. Queixam-se da fruta que vendem a 35 e é vendida a 150. “Quem lucra? É o agricultor? E isto passa-se no leite, na carne, na fruta”.
Enquanto se esvazia um garrafão de vinho, fala-se dos jovens agricultores. “Um moço que eu conheço”, recorda um lavrador do Bombarral, “com 22 anos, deu-lhe a vergonha e matou-se. Devia 4 ou 5 mil contos à cooperativa, comprou sacas e sacas de batata, o ano correu-lhe mal, matou-se. E como esse já ouvi falar de outros”, afirma um agricultor do Bombarral. “Eu votei PSD mas digo-lhe que assim não vou votar e como eu, os outros quase todos. Estamos desiludidos”
Pelas duas da manhã, vêem-se agricultores adormecidos em cima do volante dos tractores. Outros dormem envoltos em mantas, dentro de automoveis. Júlio Sebastião ausenta-se, “para dormitar”. A madrugada fria cai sobre o cruzamento da Dagorda e a rua esvazia-se.
De manhã, ainda Sebastião não voltou do banho retemperador que foi tomar a casa, um círculo de lavradores, boné na cabeça, braços cruzados, entretem-se a prognosticar o que se vai passar na reunião com o ministro. “Se eles voltam de mãos vazias é que é o diabo”. Mais tarde, um jovial Júlio Sebastião declarava antes de partir para Lisboa “estar muito esperançado de que tudo iria correr bem”. Mal sabia ele, que voltaria mesmo à Dagorda “de mãos vazias”.Posted by Hello