estradas perdidas

Atrás de casa, encoberta por tufos de erva daninha, silvas e bidões abandonados, o comboio de janelas iluminadas vinha das Quintãs e silvou depois do túnel em curva, em direcção a Aveiro. Ali ao lado há uma estrada, a minha primeira estrada. Mulheres e homens cruzam-na impelindo teimosamente os pedais das bicicletas. Junto à vitrine de um pronto-a-vestir lê-se "Modas Katita". De uma taberna, saem dois homens que se dirigem para duas Famel-Zundapp. Estrada perdida.

2004-11-09

A Dona Amélia estava a dormir

“Tinha ido encosta abaixo, lá ia a Dona Amélia…”comenta um vizinho entre o desgaste de uma noite sem dormir e a ironia de quem não se importaria muito de perder a Dona Amélia. Veste um falso casaco de peles ou as peles não são verdadeiras ou é a Dona Amélia que não enquadra com aquelas casas raquíticas, em branco, penduradas periclitantes sobre a encosta. “Estive a ver um bocadinho de televisão, como é meu costume e depois adormeci no sofá…veja o senhor que nem sequer fui à cama, não preciso, quando me dá para adormecer na sala, adormeço, vivo sozinha…”
O bombeiro veste aqueles coletes amarelo berrante todo protecção civil e entra em cena com a falsa arrogância de um profissional: “A senhora devia estar ali atrás porque nós vamos precisar de colocar aqui umas fitas de protecção e isto aqui não está seguro para ninguém, ok? E você, se não se importa, faz as suas entrevistas ali…”
A ravina abriu, desmanchou-se enquanto a Amélia mergulhava no sono. “Foi tamanho o barulho, parecia um tremor de terra”, chora a Dona Josefina. “Fiquei em choque que nem me conseguia mexer. Valeu-me a minha Cláudia. Ela só dizia: “Oh mãe, vamos embora, oh mãe vamos embora…” E eu a ver o raio da televisão a tremer, só pensava num tremor de terra. Afinal, era a casa a ir abaixo, veja lá o senhor há quantos anos o maldito senhorio não devia ter feito obras aqui. Nós sempre a pedir e ele a dizer que não há dinheiro, não há dinheiro”. Rosa, a filha atarracada e gorda da Dona Josefina pausa o cigarro e comenta, entre dentes, enegrecidos pela nicotina: “Puta que o pariu que o tem todo debaixo do colchão! Ele que me apareça aqui hoje que o racho todo!”
Daniel é o marido de Rosa. Não vivem ali. Felizmente que nunca precisaram. Quando Rosa casou, bem mais elegante e sem aqueles papos a tornear-lhes o olhar de mãe cansada, foram viver lá mais para cima. “Viemos aqui para ajudar a minha sogra. Desde ontem há noite já acartei sofás, o televisor, a máquina de lavar. Você venha aqui comigo”.
Entro num corredor estreito onde evito uma velhinha de bata azulada, olhar distraído, sentada num banco caiado de branco, tudo ali parece caiado de branco. Não…a porta de madeira da casinha da Dona Josefina está pintada em azul marinho e tem uma ferradura na parte de cima. As vidraças da janela da casa da Dona Amélia estavam compostas por umas pequenas cortinas vermelhas e brancas aos quadrados. A velhinha não se move, nem quando alguém desenrola a enorme mangueira vermelha e percorre o corredor apertado com ela não mão. “É a minha mãe”, explica a Dona Josefina, “essa é outra que mais dois minutos e só parava lá em baixo…”
“Veja só isto”. Daniel é um rapaz homem de idade indecifrável. Pode ter entre os 28 e os 38 anos. Veste uma camisola de gola alta de lã azul escura, traz os olhos inchados e levemente inflamados e o cabelo aloirado desalinhado. Por baixo da camisola, descobre-se uma t-shirt branca toda amarrotada. As calças de ganga estão pintalgadas de cal, pó, manchas escuras. Os sapatos estão cobertos de poeira. “Veja-me isto, veja-me este milagre. A miúda, a Cláudia, dorme ali, dormia ali…”
O ali é agora um grande buraco sobre o abismo. Em primeiro plano, a torrente de lama, pedaços de mobília, roupas diversas, ramos, bocados do que foi uma divisão, tijolos, cimento, lixo, tudo mastigado e despejado encosta abaixo. Lá em baixo, o mundo dos outros, o quintal com a palmeira, a casota do cão- onde está o cão?- a vivenda verde desmaiado, a praceta. Tudo imóvel, nem uma vivalma, dir-se-ia que o mundo dos outros dormita, indiferente ao rebuliço trágico dos que vivem na encosta. “E se a Cláudia estivesse deitada, diga-me lá? Por milagre, estava a ver televisão com a minha sogra…”
“Não vão para aí, repete o bombeiro, “já disse aos senhores para não se aproximarem dessa zona, isso aí pode ruir a qualquer momento.” Reage o Daniel, o peito por debaixo da camisola de lã azul escura a inchar de raiva e cansaço: “Porra, isto aqui é meu! Não posso mostrar ao homem a minha casa? O que resta dela. Vocês se ao menos chegassem a tempo mas não chegam! Onde é que estavam quando esta merda estava toda a ir abaixo?”
Chega a jornalista da TVLI. Ninguém se lembra mais da Dona Amélia. “Minha nossa senhora”, comenta entre dentes o bombeiro que segurava a mangueira. Até o aí enraivecido Daniel se esquece da Rosa e da sogra: “Disto é que a gente precisava cá no bairro…” Apressa o passo e quase choca de frente com a repórter, a saia curta, um metro e setenta e cinco de pura sedução feminina, os cabelos escuros caídos sobre os ombros, uns olhos de amêndoa fixando Daniel: “Você é do bairro? A sua casa desabou?”
Daniel coça o pescoço já de si avermelhado e faz que sim com a cabeça. “E a senhora, a senhora também vive nesta casa?” Em segundos, juntam-se no estreito corredor a Dona Amélia, a Cláudia, a Dona Josefina, mais o Daniel e uns tantos vizinhos que até aí haviam permanecido na penumbra.
Fora daquela pequena vila de casas pequenas, reúne-se entretanto uma mole de curiosos em redor da carrinha da TVLI. “Viste-me aquela gaja?”, “Tu já não tens andamento para a tua, quanto mais para aquilo”, “eh la, é hoje que a Vila Américo vai aparecer nas notícias!”. Um rapaz corre ladeira acima a chamar os amigos. O empregado do Café Américo espreita a pequena multidão em frente e apressa-se a sintonizar o televisor na TVLI: “Os gajos dizem que a Vila Américo vai aparecer no Jornal da Uma!”
A Vila Américo nunca mais é a mesma. “Oh Laura”, diz secamente um operador de câmara, “assim não pode ser, vão aparecer todos em contraluz”. Laura está mais preocupada com o facto de ter apenas mais dez minutos antes de entrar em directo. “Bom, vai ser assim, começo por entrevistar a Dona Josefina, depois entrevisto a Cláudia e por fim o senhor Daniel. Pode ser? Depois, você, Daniel vem comigo e com este senhor que tem a câmara, aponta para o buraco e explica tudo o que aconteceu. Pronto”.
Laura ajeita o cabelo, segura o microfone por debaixo do queixo. “Laura, não dá, está em contra luz”, diz o operador de câmara, encolhendo os ombros, a mascar pastilha elástica, preocupado com o próximo serviço, em Vila Franca de Xira, às três da tarde e a pensar onde há-de ir almoçar. “Ouve lá, onde é que foram buscar essa gaja?”, pergunta o assistente, segurando o cabo que liga ao carro de exteriores. “Sei lá”, solta o operador, “acho que é a nova namorada do editor do Jornal da Uma...”
Dez minutos para as duas da tarde, Café Américo. “Oh Zé, então a Vila Américo aparece nas notícias hoje ou amanhã?” O Zé já coça a cabeça, os dois braços sobre o balcão: “É agora, depois do intervalo, depois dos sabonetes ou quem é que pensas que paga isto?” Um bruáááá da rapaziada do fundo do café e faz-se silêncio. “É agora, é agora”. Uma apresentadora loira de lábios muito pintados fala com olhar sério directamente para a plateia do Café Américo: “Ontem à noite, viveram-se momentos de angústia na Vila Américo, em Sacavém. Pelo menos duas casas ficaram destruídas e seis pessoas desalojadas quando estas ruíram sob o efeito do mau tempo que se fez sentir. No local, temos agora em directo a repórter Laura Assunção”.
“Ei, g’anda borracho, oh Laura, filha, passa cá mais vezes!”, grita um rapaz com o boné virado ao contrário e brinco na orelha. “Deixem ouvir, deixem ouvir”, ordena o Zé. Laura surge no ecrã do televisor. Custa a crer que um anjo daqueles se tenha dado ao trabalho de visitar a Vila Américo. “Assim é, Sofia, temos connosco a Dona Amélia que nos vai...” A Dona Josefina, ajeitando a bata: “Josefina, Josefina...” Laura: “Temos aqui a Dona Josefina...”
Dois minutos mais tarde. “Ei, olha o Daniel, parece mais gordo! Ei, a apontar lá para baixo, o bacano, parece um actor de cinema”. Comentário de um segundo observador: “Foi a miúda que lhe disse para apontar. O Daniel era lá gajo para se lembrar de uma fita dessas, o Daniel é burro que nem um calhau...Olha, já acabou. Caramba, e agora Vila Américo? Só isto?” O Zé vira-se para tirar um copo para a imperial do bombeiro: “Ai tu pensavas que isto era um dia na vida da Vila Américo?”
A Dona Amélia entra de mansinho. “ Zé, filho, tira-me um descafeinado”. O Zé: “Então Dona Amélia, não foi entrevistada? A sua casa esteve quase a ir...” A Dona Amélia entre a tristeza e a resignação: “Oh filho, mas não fui. Dizem que eu não vi nada, não ouvi nada porque estava a dormir. Ainda perguntei à moça da televisão o que é que ela achava, se me iam dar uma casa nova...olha, ficou a olhar para mim feita parva”.