estradas perdidas

Atrás de casa, encoberta por tufos de erva daninha, silvas e bidões abandonados, o comboio de janelas iluminadas vinha das Quintãs e silvou depois do túnel em curva, em direcção a Aveiro. Ali ao lado há uma estrada, a minha primeira estrada. Mulheres e homens cruzam-na impelindo teimosamente os pedais das bicicletas. Junto à vitrine de um pronto-a-vestir lê-se "Modas Katita". De uma taberna, saem dois homens que se dirigem para duas Famel-Zundapp. Estrada perdida.

2004-11-05

FOBIA SOCIAL

Testemunho de fobia social

(Clicando no título acima, em azul, obterá informação, outros testemunhos e pistas com possibilidades de ajuda. Para que ninguém tenha vergonha de ter fobia social e perceba que é possível vencê-la)


Nunca saberei explicar ao certo porque é que adoeci com uma fobia social, se bem que os médicos me tenham dito que como pessoa tímida e retraída sempre fui propenso a fugir das outras pessoas e refugiar-me no meu seguro casulo. Alguns acontecimentos, espaçados no tempo mas todos eles perturbadores, precipitaram a minha crise em finais de 1992.
Dia a dia vivia frustrado com o meu trabalho. Comecei por odiar os telexs, depois comecei a odiar o chefe, até que por fim já odiava os meus colegas pela sua descontracção e felicidade junto da minha frustração e quando dei por mim, toda a gente me parecia odiar e eu odiá-los a eles.
Assim, em meados de 1991, eu era um sujeito olheirento, escanzelado e algo perturbado, que deixava esvaír todas as minhas forças numa luta imbecil e inglória contra a camisa de forças que era para mim a agenda do jornal diário. Não era raro o dia em que cumpria a meia hora de travessia de barco entre Lisboa e o Barreiro, onde vivia, de semblante carregado.
Da primeira vez, foi tudo muito estranho. Sentara-me nos bancos de madeira do barco e ouvi alguém sussurrar: “ui, este...” Olhei para a frente e vi duas mulheres de meia idade, a mais incomodada refugiando-se atrás de uns óculos tipo ray-ban. “Tem um ar sinistro...” sussurrava para a amiga do lado. Lembro-me que trazia uma “Time” e a velha pasta preta e que tentei responder ao embaraço folheando a revista. Em breve, descobriria que elas estavam acompanhadas por vários colegas de trabalho. O grupo rodeava-me de frente, sentados nos bancos de madeira à minha frente e dos lados.
Nestas alturas, uma pessoa pergunta-se a si mesmo: que mal fiz eu? Que cara deveria fazer? Estou a fazer cara de parvo, de imbecil?”. As primeiras palavras “ui, este” e “sinistro” paralisaram-me completamente. Lembro-me que uma das pessoas do grupo, uma mulher, sentada do meu lado direito, começou a dialogar com um homem que estava do lado esquerdo. Não senti forças nem ânimo para sugerir a um deles que se sentasse no meu lugar. Sentia-me como que crucificado e ali me deixava estar. Em breve, os comentários sob a minha presença corriam pelo banco de madeira à minha frente. “Ele não é...”, dizia baixinho, como que convencida que eu não ouvisse, uma mulher gorda, de revista “Maria” no regaço, fazendo sinal de pouco tino na cabeça. “Ah”, disse a que estava ao meu lado, “eu já tinha percebido...”
Quanto mais me sentia humilhado e vexado, mais insistia comigo próprio para me conservar no lugar, custasse o que custasse. Tinha comprado um gofre antes de entrar para o barco e nem dei por ter amarfanhado totalmente o papel do gofre na minha mão suada. Por fim, já não sabia para onde deveria olhar. Tudo à minha frente era sussurros e risinhos, a situação era insustentável mas durante a meia hora da travessia de barco, aguentei-me estoicamente no lugar.
No extremo do banco, juntamente com as mulheres, viajava um homem. Como único elemento masculino do grupo, descarreguei nele toda a minha raiva. Olhei para ele com um semblante carregadíssimo à espera que desviasse o olhar. Qual quê... A resposta não se fez esperar: “Este deve gostar de levar no rabinho...”
A frase teve o efeito em mim de uma bomba de napalm. Era a humilhação, o vexame, a derrota, as palavras que gostaria de ter pronunciado e não pronunciei, o facto de ficar ali, sentado, preso ao banco de madeira, o papel amarrotado na mão. As pessoas saíram do barco com aquele troar habitual e eu ali fiquei. Devo ter sido o último a saír. Nesse dia cheguei a casa, lembro-me perfeitamente que estava lá a minha mãe e a minha mulher estava no oitavo mês de gravidez. Tive de fingir como se nada se tivesse passado.
Na travessia de barco, comecei a refugiar-me no bar porque não conseguia já sentar-me à frente das pessoas. Aterrorizava-me a ideia de ser confrontado de novo com aquelas pessoas. E se elas me aparecessem de novo à frente? E se eu realmente estivesse com um ar sinistro e cadavérico e assustasse as pessoas? Outras, nessa eventualidade, notariam o meu descontrole.
Quando, por vezes, ganhava coragem para subir as escadas da antiga segunda classe, ia sentar-me exactamente lá no fundo, num banco que me deixava virado para a parede. Podia ouvir as vozes das pessoas atrás de mim e suspeitar que alguém estivesse a falar de mim, sobretudo quando ouvia uma ou outra gargalhada, mas pelo menos sentia.-me mais protegido.
Em Novembro de 91, deixei de frequentar o bar do barco. A minha figura magra e amargurada não deve ter passado despercebida a um grupo de foliões que animava as passagens de barco entre garrafas de cervejas e comentários jocosos às empregadas. Um dia, estava nas escadas, à espera da minha vez para descer para junto da porta de saída, quando ouvi: “ponham-se na bicha!” Alguém respondeu: “Bicha não, é homossex que se diz agora”. Fiquei paralisado. Obviamente pensei que tudo teria a ver comigo. Reconheci-lhes as vozes e esperei pelo pior. Foi então que um perguntou: “Mas afinal a bicha está à esquerda ou à direita?” Nesse momento, julguei que dezenas de barreirenses iam olhar para mim como uma bicha.
Aos poucos, todo e qualquer sorriso me perturbava. O empregado do café da estação ria-se para o colega, estava a rir de mim. Alguém sussurrava perto de mim, estava a comentar qualquer coisa a meu respeito. Uma gargalhada em tom mais alto, atrás das minhas costas, tinha um efeito devastador.
O bar já não era seguro. Agora, já não era só o espaço dos assentos que me metia medo. A cena passada na escada do barco intimidara-me tanto em relação aos habitués do bar que nunca mais tive coragem de lá entrar.
No inverno de 91/92, passei a frequentar exclusivamente a varanda do barco, estivesse frio ou chuviscasse. Passava em passo acelerado pelo salão da primeira classe, não olhava para ninguém, abria rápidamente a porta e sentava-me nos bancos da varanda. Caso estivessem ocupados, virava as costas e ía de olhos postos no rio, tentando esquecer a presença de pessoas à minha beira.
No emprego, qualquer pessoa, qualquer colega que por qualquer motivo se postasse à minha frente a conversar sobre o que quer que fosse, perturbava-me. Até que um dia, ouvi um dos meus colegas mais próximos comentar baixinho: “este gajo tem de consultar rápidamente um psiquiatra”.
Em Março, já não aguentava mais. Continuava a trabalhar com regularidade mas o percurso casa-emprego e emprego-casa era um pesadelo. Falei pela primeira vez à minha mulher em consultar um psiquiatra. Ela consultou o grosso volume das páginas amarelas e apontou o dedo sobre o nome de um médico ao calhas.
O consultório dele era uma reconstituição relativamente bem conseguida do que deveria ter sido o consultório de Freud em Viena. Era revestido de madeira, com bibelots cuidadosamente escolhidos e um relógio de pé onde eu mirava o tempo que me restava dos 45 minutos da consulta. O consultório não tinha sala de espera. Eu ía exactamente à hora, tocava na campainha e entrava como se estivesse a entrar para um refúgio, a mão do médico impelindo-me carinhosamente para dentro.
Depois, deitava-me numa espécie de divã incaracterístico e ficava a olhar para o tecto. Lembro-me que o tecto por cima do divã era uma placa metálica com aqueles buraquinhos a servir de respiradouros. Fazia-se um silêncio muito embaraçante até que ouvia a voz dele, sentado num cadeirão por trás de mim: “Em que está a pensar?” A minha resposta era quase sempre a mesma: “Estou a pensar que vim a correr e cheguei aqui atrasado”.
Era verdade. Como a consulta era sempre às 9h e eu vinha do Barreiro, o mais habitual era chegar às 9h25 ou 9h30. Pouco lhe importava a ele. Mandava-me deitar no divã e acabava a sessão imperetrivelmente às 9h45.
Por cada 45 minutos por semana gastava cinco contos. Obviamente, em breve comecei a questionar a utilidade daqueles cinco contos. Em duas ou três sessões contei tudo o que tinha a contar. Cada vez era mais difícil iniciar a conversação e às vezes esta começava acerca de temas tão odiotas como o facto de não ser pontual. Aborreci-me e um dia, não pus lá mais os pés.
Nesse inverno, folgava muitas vezes durante a semana. Nesses dias, não tinha mais coragem para sair às ruas. Fechava-me em casa e deixei de ir almoçar fora. Fazia arroz branco com bife de perú e fazia também o meu proprio café. Não frequentava cafés nem supermercados e começava a desconfiar dos sorrisos dos vizinhos.
Como já não conseguia percorrer as ruas da cidade e o próprio percurso barco-casa e casa-barco se havia transformado num horrível sofrimento, comecei a folhear as secções de vendas de casas para procurar uma casa fora dali, de preferência na Caparica, junto ao mar.
O percurso casa-barco era assim: primeiro tinha de enfrentar as janelas de rés-do chão da vizinhança e aí poderia surgir algum rosto sorridente que eu teria de ignorar. Deixei de olhar para os lados. Se houvesse um grupo de rapazes a fazer ruído do outro lado da praceta, eu , como muito simplesmente não os conseguia enfrentar, não olhava para eles.
Depois, tinha de passar em frente do supermercado onde deixara de ir por receio de ser identificado. E o percurso de uns 10 a 15 minutos até ao barco eram uma sucessão de lojas, cafés e tabernas que constituíam um suplício para mim. Se numa determinada taberna, não estivesse ninguém à porta, conseguia passar razoavelmente. Se, no entanto, ali estivessem três ou quatro homens a falar uns com os outros, eu passava atemorizado.
Em Agosto, em férias no Algarve, tudo se passou aparentemente na normalidade. O que a minha mulher não sabia nem os meus pais, era o grau de dificuldade com que eu me sentava numa esplanada onde tivesse rostos à minha frente ou a tortura que representava o acto banal de descer as escadas e entrar no bar do prédio.
Durante um mês, não frequentei a piscina do edifício apesar de esta estar mesmo ao lado do apartamento. Passava em frente à recepção em passo acelerado e não cumprimentava ninguém.
Em Setembro de 92, sentia-me já cercado por tudo e todos. Não me conseguia concentrar a escrever na sala de redacção porque parecia que todos olhavam para mim, era doloroso frequentar o autocarro onde não me podia sentar à frente de ninguém e a viagem de barco era um tormento. Nessa altura, pela primeira vez, pedi ajuda aos meus pais.
Até que, inevitavelmente, o alastramento impiedoso da doença chocou de frente com o desempenho profissional. No dia em que tinha de partir para mais uma reportagem, uma viagem nocturna de barco em Peniche combinada há semanas, não fui capaz. “O que é que se passa?”, perguntou atónito o editor. “Não sei, não sei...”, balbuciei, um esforço tremendo para reprimir as lágrimas. “Parece uma angústia muito grande, não é?”, perguntou. “Sim, sim...”, respondi, a mão na testa, tentando afogar o que era já o início de uma futura depressão. “Vá, vamos almoçar que isso passa”. Não passou.
Desmachei-me a chorar num dia em que me mandaram para uma conferência de imprensa e da qual tive de fugir porque muito simplesmente não conseguia lá estar. Estar rodeado pelos outros era aflitivo mas ter de enfrentar uma mesa de pessoas sentadas à minha frente era ainda pior.
Pela primeira vez, vários colegas meus viram-me a chorar. Vi-os cochichar ao longe, alguns com a boca aberta de espanto. “Não consigo estar aqui”, dizia ao meu editor, “sinto que estou a incomodar as outras pessoas”. Ele respondia: “Nuno, isso é tudo da tua cabeça, aposto contigo em como a maioria das pessoas nesta sala nem sabe o que tu tens”.
Durante um mês não saí da redacção. Só fazia trabalhos com base em telexs e tremia aterrorizado sempre que se colocava a possibilidade de me mandarem a qualquer lado. Nessa altura, não conseguia olhar nem cumprimentar os colegas que se sentavam na secção ao lado, mal saía do meu lugar, não conseguia subir ao primeiro andar onde se encontram os gabinetes da direcção e mal conseguia entrar no refeitório. Comer perante toda aquela gente era um martírio, sobretudo se de repente alguém se sentasse à minha frente.
Nessa altura, frequentei o meu segundo psiquiatra. Era um homem sensato e barbudo que me ouviu durante alguns minutos para me dizer que eu era um livro aberto. “Nuno, você para mim é como um livro aberto”. Eu estava desesperado e aceitava qualquer comentário. Queria saber o que se passava comigo e que me disessem de uma vez por todas o que eu tinha. Pela primeira vez, alguém me disse o que eu sofria. “Você tem uma agorafobia”. Saí do consultório na mesma, com a mesma dificuldade em entrar dentro do autocarro.
Mas nesse dia cheguei a casa e consultei uma enciclopedia na palavra fobia e descobri alguma coisa. Agorafobia é o medo de andar em público, de se expor aos outros, de atravessar praças e ruas expostas, de passar em frente a esplanadas. Coincidia em grande parte com o que eu sentia.
Ao mudar de local de residência, eu pensava que todos os meus medos desapareceriam como num ápice mas, bem ao contrário, o medo espalhou-se como uma mancha de óleo e tudo na Caparica se repetiu. Apesar de estar agora a viver numa rua nova, não conseguia ir à mercearia ou aos cafés da rua, antes de saír de casa olhava pela janela para ver se estava alguém no passeio a conversar e saía exactamente dez minutos antes da hora do autocarro. Isto para evitar ter de ficar à espera na paragem de autocarro, onde a presença das outras pessoas me era quase insuportável. Nos primeiros tempos da Caparica, só conheci o percurso casa-autocarro. Aventurei-me uma vez pela Rua dos Pescadores e achei que uma empregada de um estabelecimento que chamava outro colega de uma loja em frente se estava a meter comigo.
Os anti-depressivos que o psiquiatra me receitara tardavam a fazer os seus efeitos enquanto eu me sentia cada vez mais bloqueado. Pedi para gozar algumas folgas que tinha em atraso mas o sentimento de não conseguir saír de casa só tendia a deprimir-me mais. Naquele Inverno, era-me difícil fazer a viagem de regresso à Caparica de autocarro. Descia até à baixa e apanhava o barco da Transtejo que transporta carros do Cais do Sodré até Cacilhas. Escolhia esse barco porque como não conseguia enfrentar as pessoas, naquele barco podia vir ao ar livre e em quase escuridão.
Chegado a Cacilhas, muitas vezes apanhava um taxi para a Caparica para fugir ao autocarro e às pessoas. Também nos taxis, passei a ter problemas: Uma das inovações em alguns taxis, tem sido o espelho retrovisor comprido, que abarca toda a superfície do banco traseiro. Sempre que apanhava um desses taxis, fazia os possíveis por não olhar para o espelho, onde o rosto sereno do taxista me aparecia como uma tremenda ameaça.
Um colega cuja esposa é psicóloga aconselhou-me um psicólogo especializado em agorafobia. “Livra-te dos remédios”, dizia, “isso só te vai trazer dependência”. Concordei. Não sentia qualquer melhoria com o anti-depressivo e resolvi experimentar a psico-terapia do psicólogo.
Era um homem alto, novo, barba rala, simpático. Ainda hoje recordo o seu olhar sugestivo. Quando me via deprimido, todo ele parecia encolher-se numa expressão de sofrimento. Quando, por qualquer razão, eu aparecia mais satisfeito, todo ele se abria num sorriso que lhe fazia brilhar os olhos. “Que bom, folgo muito, para béns”, dizia, apertando-me a mão.
No primeiro dia, num breve e simples questionário académico, concluiu que eu não sofria de agorafobia. Que sim, que havia sintomas semelhantes mas eu sofria, isso sim, de fobia social. “Você tem medo de andar em público, é verdade, mas por medo dos outros, não é um medo irracional como o do agoráfobo, você tem medo do que digam de si ou que olhem para si”. Fiz que sim com a cabeça. Estava tão desesperado que concordaria com qualquer diagnóstico. “E de quanto tempo de terapia vou precisar para ficar bom?”. Respondeu: “Em três meses, você vai conseguir enfrentar melhor os outros”.
Em todas as sessões semanais, levava uma espécie de trabalho de casa, um papel em que anotava as situações que enfrentava e em que tentava quantificar através de números a ansiedade que sentia. Os primeiros progressos deram-se no trabalho. Comecei a esforçar-me por cumprimentar quem trabalhava a meu lado, o psicólogo incentivou-me a lutar pelo lugar a que eu aspirava há muito e sentia-me relativamente melhor no refeitório. Mas eram ganhos pequenos e que uma frase, suspirada perto dos meus ouvidos ou um olhar aparentemente mais trocista deitava por baixo.
Nesses três meses, consegui a custo levar a cabo algumas reportagens. Numa delas, convencido de que a melhora também passava por aí, meti-me num camião TIR até à Noruega para registar o modo de vida dos camionistas errantes. Mas tinha dificuldade em me sentar em restaurantes, em suportar olhares e comentários e toda a viagem se tornou um inglório combate contra a fobia. Parecia que por mais que eu fizesse, por mais que eu batalhasse, ela me vencia. Sempre, irremediavelmente, pensava eu na altura.
Em Janeiro de 1993, meti uma semana de folgas em atraso. Telefonei ao meu editor a explicar-lhe que me sentia pior e que queria ficar em casa. Cozinhava em casa e dava grandes passeios pela praia sob o sol de Inverno e junto a bandos de gaivotas que habitam os areais de São João. Chegava à praia e virava para a zona deserta de S. João. Por vezes, encontrava um ou outro pescador ou um pequeno grupo de surfistas mas mais nada. Quando não ía para a praia deixava-me ficar horas na cama, as persianas fechadas, ouvindo as vozes das pessoas que atravessavam a rua ou que telefonavam na cabine em frente a minha casa.
No fim dessa semana, fui consultar um novo psiquiatra, o mais cotado de todos os que haviam citado ao meu pai. Lembro-me que vagueei todo o tempo pela cidade até quase à hora da consulta porque simplesmente não conseguia estar em lado nenhum. Quando finalmente entrei no consultório e me disseram que a consulta estava atrasada, pensei ficar ali em pé para não enfrentar os outros na sala de espera. Na altura, eu considerava muito pouco ético que um doente de psiquiatria tivesse de estar na mesma sala de espera dos doentes de medicina geral ou cardiologia, por exemplo. Nesse dia, um casal sentado à minha frente percebeu que eu estava muito perturbado.
“Tem desejo de morrer, sente que gostaria de desaparecer?”, perguntava-me o psiquiatra com a voz pausada e segura dos catedráticos. Tinha um olhar grave, de gavião. Raramente sorria. “Não”, respondi choramingando, “sou demasiado cobarde para me suicidar”.
Quando a semana de folga passou, eu percebi que teria de obrigatoriamente de regressar ao trabalho. Não havia hipótese de me esconder mais. O médico receitara-me um anti-depressivo que me fazia sentir zonzo, suado e de andar cambaleante. Meti-me a custo na camionete que me despejou no Campo Pequeno.
Senti-me perdido. Depois de uma semana fechado em casa, todas as pessoas me pareciam sarcásticas e ameaçadoras. Deambulei aterrorizado até Entrecampos. Por momentos, julguei ainda ser capaz de me arrastar até ao jornal. Nunca me passara pela cabeça que um dia me veria impossibilitado de ir trabalhar. Subi então a Avenida Estados Unidos da América e telefonei à minha mulher. “Vem ter comigo. Sinto-me perdido”, dizia a chorar. “Tem calma”, respondeu, “onde é que tu estás? Mete-te no metro e vai ter ao Cais do Sodré que eu vou lá ter contigo”. Disse que sim. Agarrava-me a ela como a minha tábua de salvação. Era a única luz, uma trémula vela a tentar manter-se acesa numa noite escura e ventosa.
Lembro-me que ainda telefonei para o jornal. Foi uma chamada caótica, balbuciava entre as lágrimas que me escorriam cara abaixo. “Tens de olhar em frente”, dizia-me a colega que primeiro atendeu o telefone. “Vou ser despedido”, disse ao meu editor. Perseguia-me a ideia agora absurda mas que então me parecia real e absoluta de que se faltasse ao trabalho acabaria por ser despedido.
Conversei com a minha mulher à beira do Tejo, numas pedras de onde podia ver os cacilheiros imersos em neblina a atravessarem o rio vagarosamente. A vida, o bulício da cidade, continuava, apesar de eu me sentir perdido e derrotado, sem quaisquer perspectivas de futuro.
Os meus pais vieram-me buscar de carro num dia cinzento de Janeiro. Eu não podia continuar fechado e sózinho naquela casa o dia inteiro e por isso iria com eles para Aveiro.
Durante dois meses praticamente não saí de casa dos meus pais, a não ser para acompanhar o meu pai ao café a seguir ao almoço. Como sabia da minha dificuldade em enfrentar as outras pessoas, o meu pai fazia questão que tomassemos a bica num café da rua. Não é difícil de imaginar o quanto me custava acompanha-lo e sentar-me numa mesa no meio daquele caleidoscópio de caras que pareciam viradas todas para mim.
Um dos remédios que o psiquiatra me receitara, Asterfenazine, provocava-me umas reacções secundárias horríveis. Acordava de madrugada por volta das 3h00 da manhã sem conseguir dormir mais e numa excitação que me fazia levantar do quarto e descer e subir as escadas de casa dos meus pais. Conseguia ouvir todos os dias os primeiros ruídos da rua, os primeiros carros, as primeiras vozes, sempre acordado.
A partir de determinada altura, além das insónias insuportáveis, comecei a sentir uma excitação incrível nos braços. Era como se tivesse ácido nos braços. Mudava de posição, levantava-me da cama, pulava, mas aquela horrível sensação permanecia. Um dia desatei a chorar. Não aguentava mais, queria que tirassem aquela horrível sensação dos braços. A minha mãe pegou-me na cabeça e afagou-me o cabelo como já não fazia há muitos, muitos anos.
Vim a Lisboa ao psiquiatra para tentar resolver o problema. Ele achou que eu não me estava a dar bem com o anti-depressivo, tirou-mo, receitou-me um neurolético e manteve-me o Asterfenazine. Nesse dia, deixei de tomar o anti-depressivo e tomei o neurolético. Acordei às quatro da manhã com uma excitação tal que tive de pular da cama e passar o resto da noite a andar para trás e para diante. Foi concerteza um dos piores momentos da minha vida e não desejo semelhante experiência a ninguém.
Ao fim de dois meses, estava como no ponto de partida. A minha situação não só não melhorara, como a qualquer momento me desmanchava a chorar. Aos fins de semana, a minha mulher vinha de Lisboa, de comboio, com o meu filho mais velho, para me visitar. As despedidas, na estação ferroviária de Aveiro, eram como que um murro no estômago. Tentava controlar-me para não chorar quando os via dizerem-me adeus da janela da carruagem.
Em Março, os meus pais perguntaram-me se eu não queria ir a uma consulta a um médico de medicina geral que já ajudara a família inteira. Nessa altura, o arrastar da situação estava a desesperar os meus pais. Eu disse que sim. Não tinha nada a perder.
O médico, em Coimbra, disse que a minha doença tinha solução e que se eu quisesse me aconselhava um psiquiatra seu amigo e colega. Como eu respondi que sim, ele saíu da sala para fazer um telefonema e daí a cinco minutos mandou-me estar no dia seguinte no consultório do colega.
Lembro-me que a primeira coisa que o psiquiatra fez foi olhar para os remédios que eu estava a tomar e abanar a cabeça em sinal de descontentamento. Disse que eu tinha de ser imediatamente internado por um período nunca menor do que 15 dias.
A consulta foi a uma sexta-feira e não havia vagas nas clínicas particulares de Coimbra. O médico propôs que, para não se perder tempo, enquanto não se arranjasse um quarto numa clínica, eu fosse internado na secção de psiquiatria dos Hospitais da Universidade de Coimbra.
Meteram-me num quarto onde havia apenas mais um internado. Era um varredor de ruas de uma aldeia perto da Figueira da Foz. Falava com uma voz arrastada e olhava para mim com dois grandes olhos abertos. Deitava-se e virava-se para mim, a olhar, simplesmente a olhar. Quando, pela primeira vez, viu o enfermeiro espetar-me a agulha do soro para receber anti-depressivo, comentou: “Também já levei soro”. Achei que era uma óptima ocasião para entabular conversa. “Ah sim, quando?” Respondeu: “Quando me suicidei”. A conversa ficou por aí.
A rotina no corredor da psiquiatria era marcada pelas horas das refeições. Tinhamos de nos levantar e deslocar até ao carrinho que uma empregada trazia. Pegavamos no nosso tabuleiro e comíamos de frente uns para os outros. Logo na minha primeira refeição, o meu companheiro de quarto acenou-me e chamou-me para ao pé dele como um velho colega ou amigo de infância.
Lembro-me perfeitamente que a minha mulher e o meu pai se despediram de mim pouco tempo antes de servirem o jantar. Ali jantava-se às 18h30. Comi frango com esparguete. A maioria dos doentes comia silenciosamente, imersos nos seus pequenos dramas pessoais. Havia um, no entanto, que falava pelos outros todos e parecia um velho habitué. Uma vez pude ouvir a sua conversa para uma pequena plateia de sonâmbulos ambulantes. “Eh pa, já vistes se tu te matas, o que vai ser dos teus amigos e da tua família, tens de pensar nisso, pa, tens de pensar nisso, vais deixa-los tristes pa”.
Ali, na secção de psiquiatria, não havia qualquer limitação de visitas ou de saídas. De manhã, o meu companheiro de quarto, que já estava ali há um mês, vestia o seu blusão de ganga e ia até ao café mais proximo. Mais tarde, apercebi-me que num café ali perto havia uma mesa praticamente reservada para os doentes de psiquiatria.
Os que não saíam, passavam os dias no corredor, a andar para trás e para a frente. Em breve, tornei-me mais um, a deambular taciturno, de robe até aos pés.
Ao terceiro dia, pegaram em mim e levaram-me para uma clínica na rua da Sofia. Digo pegaram porque não me lembro de nada. Estava tão imerso no torpor dos medicamentos que não tenho memória de nada do que se passou. Na clínica, permaneci imerso num nebulento estado de graça produzido pelas injecções diárias de um frascalhão de anti-depressivo diluído em soro. De vez em quando recebia chamadas de outro mundo. Eram colegas meus que tinham sabido que eu estava na clínica e me telefonavam. Recordo-me que se ouvia sempre o matraquear dos teclados dos computadores como fundo. Sentia-me tão longe e tão protegido, ali naquele abençoado quarto da clínica que não tinha quaisquer saudades.
Todos os dias entrava-me pelo quarto dentro uma freira idosa que me cumprimentava com um “Bom dia, dormiu bem?”.
O primeiro dia que saí da clínica, lembro-me que desci as escadas com os meus pais e os segui, cambaleante pela Rua da Sofia afogada em gente que todos os dias a cruza, de trás para a frente. A luz intensa ofuscava-me e obrigava-me a fechar os olhos.
Estabeleci um plano para a minha recuperação. Como a estadia em casa dos meus pais durante dois meses me encerrara ainda mais na minha fobia, eu tinha era de passar o dia na rua e de preferência em locais públicos onde me visse rodeado de gente. Assim, durante praticamente todo o mês de Abril de 1993 apanhei diariamente o comboio regional entre Aveiro e Coimbra e passava os meus dias a saltar de café em café. Quando conseguia permanecer dez minutos ou um quarto de hora num café sem me perturbar e me ver obrigado a fugir para a rua, era uma pequena vitória que alcançava.
Havia cafés melhores e cafés mais difíceis. O café Santa Cruz, imerso numa penumbra discreta e com as mesas e cadeiras viradas para a porta, era o mais fácil. Onde quer que me sentasse, tinha à minha frente as costas das outras pessoas. Pelo contrário, no café Internacional, junto à Estação de Coimbra A, conseguia permanecer muito pouco tempo. O balcão onde se moviam os empregados estava virado para os clientes e as mesas tinham quatro cadeiras, o que significava que de um momento para o outro na mesa à minha frente podia sentar-se alguém e perturbar-me. De modo que nesse café pedia invariavelmente uma bica, para demorar menos tempo e poder saír porta fora aliviado.
Comprei um passe de autocarro e escolhi uma linha que desse a volta a toda a cidade. Dei a volta a Coimbra inúmeras vezes, sentado de forma a que me tivesse de confrontar com os rostos das outras pessoas.
O psiquiatra estabelecera que no máximo no início do mês de Maio eu devia regressar ao trabalho. Para quem pensava nunca mais conseguir enfrentar o local de trabalho e os respectivos colegas, essa meta parecia completamente utópica. Estabeleceu-se que eu durante o mês de Abril faria psicoterapia intensiva com um psicologo da secção de psiquiatria do Hospital de Coimbra.
O psicologo, ajudado por uma psiquiatra, punha duas cadeiras à minha frente a que chamava cadeira A e cadeira B. A cadeira A era a cadeira do doente, a B a cadeira de como eu gostaria de ser apesar de me sentir doente. Eu era obrigado a representar os dois papeis, sentando-me em cada uma das cadeiras. No fim, sentava-me na cadeira C, onde representava o papel de uma terceira pessoa que comentava a performance das outras “duas pessoas”.
Outras vezes, o psicologo ensinava-me a não desviar o olhar, olhando em frente mas desfocando a vista, como se nada de verdadeiramente importante ali estivesse. É esse o comportamento dos suburbanos no autocarro ou no Metro. Olham em frente mas vão imersos nos seus pequenos problemas quotidianos, nem fixam o rosto de quem têm à frente.
Um dia, o psicologo pediu-me que o entrevistasse. Nessa altura, eu estava convencido que não conseguiria fazer mais entrevistas na vida. De outra vez, no gabinete do meu psiquiatra, juntaram-se vários elementos da equipa de psiquiatria do Hospital, atrás, dos lados e à minha frente, enquanto eu era obrigado a entrevistar uma pessoa desconhecida.
“Imagine que está sentado numa mesa de um café e que vem uma estranha e pede para se sentar na sua mesa porque as outras mesas estão todas ocupadas. Você tem de entabular conversa com ela”, explicava-me uma vez o psicologo enquanto entrava na sala uma psicologa sua amiga para representar o papel de estranha.
Uma manhã, conheci uma enfermeira do hospital que sofria também de fobia social. Foi-me apresentada pelo psicologo. O seu problema residia muito simplesmente no seguinte: se alguém, seu superior, olhasse para ela ou ela sentisse que alguém estava ou poderia estar a olhar para ela enquanto executava uma tarefa, ela não conseguia executa-la. Estava seriamente perturbada porque o seu problema já durava há três anos e comprometia-lhe seriamente o desempenho da sua profissão. Virei-me para ela e disse-lhe que comparado com o meu, o problema dela era muito fácil. “Você tem problemas quando o seu chefe olha para si quando está a espetar a seringa a um doente, agora eu não consigo sequer andar na rua ou sentar-me sossegado num café!”
A prova final, nesse fantástico mês de Abril de 1993, consistiu num improvisado debate que eu tive de moderar perante uma plateia de umas 25 pessoas. Primeiro, puseram-me a ler um texto de Woody Allen, o que desmanchava as pessoas à minha frente a rir e punha à prova a minha resistência ao ridículo. Depois, tive de conversar com elas sobre um tema à minha escolha. O debate foi um sucesso e as pessoas perguntavam no final ao psicologo o que é que eu tinha. Lembro-me que um rapaz se levantou da plateia e me cumprimentou como se cumprimentasse um heroi. “É que, sabe, eu também tenho fobia social”.
Regressei ao trabalho na meta proposta, Maio de 1993 mas só mais tarde, muito mais tarde, consegui dar valor ao trabalho da equipa que, juntando a utilização de medicamentos e a psicoterapia, me ajudou a recuperar.

3 Comments:

  • At 5:19 da tarde, Anonymous Anónimo said…

    Um relato fora de série na 1ª pessoa...apesar de algo distinto daquilo q sofri (ou ainda sofro) em mts aspectos me revi nas suas linhas.

    Parabéns pelo sucesso e votos sinceros para que tudo corra pelo melhor!!

    Já agora um Feliz Natal e um próspero Ano de 2005!!

    Nuno Sequeira

     
  • At 9:55 da manhã, Anonymous Anónimo said…

    Meu nome é Rômulo moro em Niterói, Rio de Janeiro- Brasil.Entrei em um pré-vestibular, faz mais ou menos uma semana, e não me recordo das coisas aprendidas na escola, tenho momentos de verdadeira tortura, por estar exposto às pessoas do pré que curso, principalmente quando um professor m faz perguntas, principalmente professor de disciplinas q envolva contas, como física, matemática, química, e sei q se eu sair não irei me formar, principalmente porque não encontrarei um curso que tenha só 5 pessoas, contando comigo e com o professor, e às vezes 6 nas aulas de matemática, deido a alunos q prestam concurso público q so necessitam dessa matéria e português. Mas enfim, mesmo com esse pouquinho de gente, me sinto intimidado, às vezes acho que vou chorar por não conseguir acertar a pergunta q o professor m fará, ou simplesmente por ele perguntar, e também crei que a fobia causou déficit de atenção por eu ter desencolvido na escola então passava mais tempo preocupado com os meus medos do que estudando e ainda isso se reflete, tomo Remeron SolTab para a ansiedade mas acho q deriva muito do ridículo que passo ao m fazerem perguntas a respeito da aula, não sei nem nomes de antigos presidentes do meu país, apesar de ter estudado história na escola, não sei as capitais, conta de dividir por doi números, e por aí vai... E mesmo estudando não m concentro em outra coisa a não ser meus problemas fóbicos. Precisava muito falar sobre o tipo de terapia q vc fez e su aopnião sobre meu caso, meu e-mail é romulomarvila@hotmail.com
    Grato, Rômulo Marvila!

     
  • At 3:55 da tarde, Anonymous Anónimo said…

    Acho que você já foi muito corajoso só pelo fato de sair de casa e enfrentar essa doença. Desejo que vc a supere e seja feliz sem se preocupar com o que se passa na cabeça dos outros :)

     

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