estradas perdidas

Atrás de casa, encoberta por tufos de erva daninha, silvas e bidões abandonados, o comboio de janelas iluminadas vinha das Quintãs e silvou depois do túnel em curva, em direcção a Aveiro. Ali ao lado há uma estrada, a minha primeira estrada. Mulheres e homens cruzam-na impelindo teimosamente os pedais das bicicletas. Junto à vitrine de um pronto-a-vestir lê-se "Modas Katita". De uma taberna, saem dois homens que se dirigem para duas Famel-Zundapp. Estrada perdida.

2004-11-02

Fragilidades

- Importas-te de falar mais baixo?
- Ninguém nos estás a ouvir.
- Aquela mulher, não é essa, é aquela ali...porra, não olhes assim com esses olhos abertos...está a ver agora?
- Eu estou-me cagando para a mulher.
-Mas não estou eu. Ouve o que eu te digo, tens de moderar...
- Moderar o quê?
- Moderar tudo. Falas de mais, dizes coisas a mais, expões-te de mais. Ninguém se comporta assim hoje em dia...
- Deste em psicóloga agora? Quanto é que é a consulta?
- Não é isso. Tu és frágil ou sentes-te frágil e sentes necessidade de pôr tudo cá para fora, as inseguranças, os medos, as dúvidas, as incertezas...
- Estou a ser sincero.
-Ok, mas a maioria das pessoas não faz isso, ao mostrares as tuas fraquezas estás a dar pontos aos outros. -Ao adversário...
-Exactamente, vês como me entendeste, ao adversário.
-Mas eu não tenho adversários, eu quero ser amigo de toda a gente, quero amar e perdoar. Olha aquela mulher, vou-lhe dizer adeus e sorrir, ela vai perceber que eu gosto dela.
-Pára. Ela vai achar que tu és maluco... fazes isso e eu vou-me embora.
- Não vás, sabes como preciso de ti.
- És tão imaturo, meu Deus. Então se não queres que eu vá embora, aprende algumas regras, não dês trunfos aos outros. Porque é que foste contar a toda a gente que andas a fazer terapia?
-Porque é verdade, porra, ando a fazer terapia.
- Mas as outras pessoas não precisam de saber. Os outros escondem as cartas e tu jogas tudo em cima da mesa.
- É a minha maneira de ser.
- Pois é mas passas a ser um livro aberto para toda a gente.
-Leiam o meu livro, também não lêem grande porcaria.
-Mas já te disse, não é assim que a sociedade funciona hoje em dia. Muitas das pessoas neste bar devem ter problemas semelhantes aos teus ou mais graves mas não andam aí a apregoar pelas ruas.
- Mas deviam, deviam abrir as janelas e deitar tudo cá para fora.
-Mas íam sentir-se mais frágeis, com vergonha, despidas, percebes.
-Eu não me sinto despido.
-Era uma imagem.
- Eu sei, posso sentir-me frágil mas não sou burro.
-És um bocado simple mind às vezes.
- Só porque gosto de dizer a verdade e ser honesto?
-Ser honesto não significa que tenhas de ser ingénuo, tu és muito ingénuo às vezes. Tens de saber resguardar-te mais.
- Eu não gosto de silêncios inteligentes.
- Então continua a mandar tudo cá para fora.
- Aquela mulher está a gostar da nossa conversa.
-Pudera, tu nem o tom de voz consegues moderar.
-Estou-me a cagar para o tom de voz. Vou sorrir para ela, vais ver como ela me vai retribuir o sorriso.
-Com essa pinta de maluco? Ao menos podias ter feito a barba e penteado o cabelo. Lavaste os dentes ao menos?
-Agora estás-me a ofender. Olha, vê como eu sorrio para a mulher.
-Oh não...não quero ver.
- Olá minha senh...
-Vês?
-A p...! Virou-me a cara!
- Não eras tu que querias ser amigo de toda a gente, amar e perdoar?
- Eu tentei.
-És tão infantil.
- Aquela mulher...está perdoada...coitada, deve ter um problema mais grave que o meu, só que o está a guardar para si, para não se expor perante os outros, para não exibir a nudez da sua fragilidade aos meus olhos de abutre observador. A sociedade hoje em dia é assim, as pessoas escondem-se umas das outras.
-Aprendeste depressa.