estradas perdidas

Atrás de casa, encoberta por tufos de erva daninha, silvas e bidões abandonados, o comboio de janelas iluminadas vinha das Quintãs e silvou depois do túnel em curva, em direcção a Aveiro. Ali ao lado há uma estrada, a minha primeira estrada. Mulheres e homens cruzam-na impelindo teimosamente os pedais das bicicletas. Junto à vitrine de um pronto-a-vestir lê-se "Modas Katita". De uma taberna, saem dois homens que se dirigem para duas Famel-Zundapp. Estrada perdida.

2004-11-28

Leandro, Ireneide e um micro-ondas

Leandro é tímido, meio caboclo, cabelo em cachos pretos, olhar assustado. Ireneide é forte, foi ela que batalhou para arrancar esse caboclo envergonhado lá do sítio, a 32 quilometros em estrada de chão até Marilac, mais um tanto até Valadares, Governador Valadares, Minas Gerais. Leandro veste uma t-shirt do Atlético Mineiro que o frio húmido da Caparica obrigou a cobrir com um blusão preto comprado aos indianos da pracinha. Ireneide é gordinha, baixinha, cabelo preto em forma da copa de um pinheiro manso e forte, não esqueçam, Ireneide é forte. Arrancar o caboclo Leandro das galinhas, do porquinho, do feijão, das tarde de domingo torcendo pelo Atlético ouvindo no rádinho de pilhas enquanto jogava sinuca com Tio Zé, embalados numa bela de uma cachaça mineira, não foi fácil não. O mais difícil foi afastar Leandro da vidraça traseira da combi quando vóvó Maria mais o primo Washington seguraram Leandrinho que queria vir correndo atrás. Naquele dia de há dois anos, Leandro chorou o tempo todo, em surdina, no ónibus que cruzou Belo Horizonte de noite para chegar de manhã ao Rio. Portugal era então uma quimera, um sonho. Ireneide dizia: "Leandro, tu já é pobre, mais pobre ainda tu não vai ficar". Dois anos. Ireneide mata a saudade no orelhão, perdão, na cabine telefónica lá da Avenida do Mar, em Santo António da Caparica. No Natal de 2003, prometeu a Leandrinho um carrinho igual ao da televisão. "Mamãe te ama, viu, mamãe não esqueceu você, meu filho, a gente está trabalhando muito, meu filho, logo logo vamos chamar você para vir morar com a gente". Não está fácil. Leandro, que trabalhava de forma intermitente em trabalho de construção civil que ía e vinha, aparecia e desaparecia como as vagas da Caparica, anda desanimado. Cada vez está mais difícil conseguir trabalho. Cansou de esperar as carrinhas que páram ou não páram ao fim da madrugada na esquina da Caixa Geral de Depósitos, na Caparica. Distribuiu publicidade durante dois dias mas desanimou outra vez. Juntou-se ao grupo dos desanimados, os que conversam em bando na pracinha antes de rumarem ao Serginho para um Superbock, fzzzz, essa "cerveja portuguesa que enche o estômago da gente..."Ireneide fica trabalhando pelos dois, lavando escada, trabalhando em duas, três casas diferentes para pagar a renda no fim do mês.
Foi ontem que eu vi o Leandro e a Ireneide pela primeira vez. Para eles, o português que acabara de colocar jornais no eco-ponto era um ser invisível, de primeiro mundo. Ireneide tinha os olhos grudados naquela caixa branca e metálica do lado do eco-ponto. "Está bom, anda, ajuda..." Leandro caboclo lá veio no seu passo tímido. Estava a chuviscar mas quem molha alguém que acaba de encontrar um micro-ondas que um português deitou fora, no meio de tamanha lixarada? "Hoje a gente deu sorte..."pensou Ireneide. Leandro pegou no lado direito do aparelho. Se a mulher fica feliz, que se dane, eu quero é beber uma lá no Serginho que esse frio está de roer osso de carrocho". O português sumiu à sua vida de português, de primeiro mundo. Leandro e Ireneide carregaram o micro-ondas para dentro da casinha, um anexo por detrás de um antigo restaurante. Ali perto, famílias de portugueses almoçavam frango com batatas fritas, enchendo as mesas de uma churrasqueira. "Tu é pobre, mais pobre ainda tu não vai ficar"