estradas perdidas

Atrás de casa, encoberta por tufos de erva daninha, silvas e bidões abandonados, o comboio de janelas iluminadas vinha das Quintãs e silvou depois do túnel em curva, em direcção a Aveiro. Ali ao lado há uma estrada, a minha primeira estrada. Mulheres e homens cruzam-na impelindo teimosamente os pedais das bicicletas. Junto à vitrine de um pronto-a-vestir lê-se "Modas Katita". De uma taberna, saem dois homens que se dirigem para duas Famel-Zundapp. Estrada perdida.

2004-11-18

"Vergonha de mim próprio"

"Sou de Braga". Apetece dizer: "escusavas de o dizer, a pronúncia atraiçoa-te" . Artur Rogério, olha para nós detrás do cansaço e das rugas vincadas de quem parece ter bem mais que 42 anos. Há 15 dias ainda estava na Alemanha, a trabalhar nas obras, em Munique, arregimentado por um sujeito de Viseu. Agora está ali, a queixar-se dos pés e do infortúnio. "Fui para a Alemanha enganado, eramos 30, a trabalhar para um homem de Viseu. Trabalhámos três meses. Quando a obra acabou, o nosso patrão desapareceu com 200 e tal mil marcos".
Ao frio dos dez graus negativos do Inverno alemão, ainda dormiram num barraco onde foram ajudados pela polícia e por populares. "Dizem que os alemães são racistas? Comigo, foram espectaculares". A polícia germânica ainda lhe pagou a ida de comboio até à fronteira. Depois, veio à boleia. Demorou três dias, entre boleias boas, como uma que o trouxe desde França até Toledo, em Espanha, e caminhadas dolorosas pela montanha espanhola à noite. "Fiquei com os pés todos arrebentados e tive de largar um dos meus sacos".
Há uma semana, Rogério chegou a Lisboa, depois de uma boleia de Campo Maior até à Moita. Agora, é um sem abrigo, mais um, a dormir debaixo de uns cartões à entrada da Estação de Santa Apolónia, que à meia-noite, mandam toda a gente para fora da gare. "Um senhor que 'tava a limpar vidros na estação, deu-me um ticket para comer numa tasca ali perto e um maço de tabaco. Á noite, como o que me dão nas carrinhas". As carrinhas pertencem às equipas da noite da Comunidade Vida e Paz.
Rogério, que diz falar francês e italiano, em tempos já trabalhou no Hotel Turismo, em Braga e antes de ir para a Alemanha, era empregado de balcão num café da Póvoa de Lanhoso, não quer regressar ao norte. "Não quero, não quero voltar". Baixa os olhos e fita o chão de cimento, em silêncio, depois explica: "Sinto-me com vergonha, com vergonha de mim próprio".