estradas perdidas

Atrás de casa, encoberta por tufos de erva daninha, silvas e bidões abandonados, o comboio de janelas iluminadas vinha das Quintãs e silvou depois do túnel em curva, em direcção a Aveiro. Ali ao lado há uma estrada, a minha primeira estrada. Mulheres e homens cruzam-na impelindo teimosamente os pedais das bicicletas. Junto à vitrine de um pronto-a-vestir lê-se "Modas Katita". De uma taberna, saem dois homens que se dirigem para duas Famel-Zundapp. Estrada perdida.

2005-06-21

A LINHA DE SINTRA

Estação de Queluz, plataforma das linhas 3 e 4, cerca das 16h de ontem. Os utentes, muitos de origem africana, vão entrando e saindo das carruagens ao ritmo lento e compassado imposto pelos 36 graus sentidos àquela hora. Não se vê um polícia nem qualquer segurança privado. A atmosfera é de aparente calma.
“Se tenho medo? Tenho. Já me tentaram roubar umas duas ou três vezes mas fugi sempre”, explica Filipe Gama, estudante, 20 anos. As horas mais perigosas são as do final da tarde. “Ao fim do dia tenho sempre algum receio.”
O facto de já ter sido vítima de tentativa de assalto não desenvolveu nenhum sentimento de raiva ou revolta em Filipe. “Acho que não deve existir racismo. Numa das vezes em que me tentaram assaltar, fui ajudado por pessoas de cor.”
E a segurança? “Não há segurança. Há o revisor, mas ele não pode fazer grande coisa”, explica Filipe Gama, “e é raro o dia em que vejo aqui algum polícia”.
Muitas das pessoas que acedem à plataforma são negras. “Ontem [segunda-feira] houve aí qualquer coisa e há quem tenha receio. Realmente, o comboio está inseguro, mas o que podemos fazer?”, pergunta um guineense que pede o anonimato.
“Tenho receio, apesar de nunca me ter acontecido nada, mas vejo na televisão e fico um bocado apreensivo”, diz um utente, que também pede para não ser identificado. “Eu acho que devíamos dar o mesmo tratamento a toda a gente independentemente da cor da pele e o que se passa actualmente é que se permite a algumas pessoa de cor fazer tudo.”
Moisés Andrade, um jovem de origem africana a trabalhar no Centro Comercial Vasco da Gama, também sente insegurança. “Eu viajo todos os dias aqui, das Mercês à Gare do Oriente, e noto que há pouco policiamento. Devia haver mais.”
Adelina Barros, 25 anos, uma cabo-verdiana que trabalha na Misericórdia de Sintra, não tem medo. “Sinto-me segura, acho que ninguém me vai mexer, não tenho nada para levar. Estou sossegada, no meu canto, não falo mal de ninguém. Há pessoas que provocam. Ainda há dias, uma mulher disse ‘parece que estão em África’. Eu respondi logo, claro”.
A cabo-verdiana tem uma teoria para o que se tem passado: “O problema com esses miúdos que roubam é um problema de educação. Esses miúdos andam por aí sem ocupação. Os pais deles estão a trabalhar e deixam-nos por aí. Eu também tenho um filho, deixo-o na creche às 7h30 e só o vejo à noite. A gente passa o dia a trabalhar, fica sem tempo para os filhos”.
No interior das carruagens, sentido Queluz-Lisboa, cerca das 17h. A primeira sensação quando se entra nas carruagens semi-vazias é a de que, exceptuando o funcionário da CP que vem fiscalizar os bilhetes, os passageiros estão entregues a si próprios e à vídeo-vigilância. É dentro do comboio, no abrir e fechar de portas, que sobressai alguma tensão e ansiedade por parte de passageiros que viram a cabeça para trás mal se ouve o bater das portas metálicas que separam as carruagens.
“Tenho um bocadinho de receio. Ultimamente isto está inseguro”, confessa um jovem estudante carregado de dossiers. Um casal de negros, ela com um recém-nascido ao colo, viaja à nossa frente. “Medo? Se vai ter medo tem de ficar em casa, não é?”, pergunta o homem. A esposa sorri e faz que sim com a cabeça. “A culpa é desses miúdos. Se houvesse aqui mais polícia eles iam ter mais respeito.”