estradas perdidas

Atrás de casa, encoberta por tufos de erva daninha, silvas e bidões abandonados, o comboio de janelas iluminadas vinha das Quintãs e silvou depois do túnel em curva, em direcção a Aveiro. Ali ao lado há uma estrada, a minha primeira estrada. Mulheres e homens cruzam-na impelindo teimosamente os pedais das bicicletas. Junto à vitrine de um pronto-a-vestir lê-se "Modas Katita". De uma taberna, saem dois homens que se dirigem para duas Famel-Zundapp. Estrada perdida.

2005-07-06

LOS ANGELES DESAPARECIDA


Posted by Picasa

Localizada num vale a poucos quilómetros do centro de Los Angeles, Chavez Ravine foi até aos anos 50, uma comunidade de 300 famílias de origem mexicana que vivia ao seu próprio ritmo de cidade pequena, como escolas, igrejas e agricultura próprias.
Em 1949, o ano em que o fotógrafo Don Normark andou por lá a fotografar, fotografias mais tarde objecto de um livro, Chavez Ravine começou a ficar na mira das autoridades de Los Angeles. O então “mayor” Fletcher Brown votou e aprovou um projecto habitacional de 10 mil fogos, muito dos quais para os terrenos de Chavez Ravine.
Em 1950, os habitantes de um bairro visto com maus olhos, receberam cartas da câmara de Los Angeles a explicar que teriam de vender as suas casas para dar lugar ao projecto habitacional Elysian Park Heights. Alguns aceitaram passar para os novos prédios de 13 andares, outros resistiram e foram perseguidos. Alguns outros receberam pequenas indemnizações e foram embora. A maioria não recebeu nada.
A terra de Chavez Ravine acabou por ser comprada pela câmara de Los Angeles e em 1952, a comunidade deixava de existir. Ironia das ironias, o projecto habitacional prometido para o local nunca foi avante e a câmara acabaria por vender os terrenos à equipa de baseball Brooklyn Dodgers transferida pelo dono Walter O’ Malley, para Los Angeles. Foi ali que construiu o novo estádio dos renomeados Los Angeles Dodgers.
Imortalizada pelas fotos de Don Normark, a memória de Chavez Ravine foi objecto recentemente de um filme documentário de Jordan Mechner que entrevistou antigos habitantes do bairro e alguns dos responsáveis pela destruição de Chavez Ravine.
Na época, quem defendesse Chavez Ravine estava condenado a ser etiquetado de comunista. O estádio dos Dodgers acabaria por ficar nos terrenos do bairro mas o clube acabaria por saír de Los Angeles dez anos mais tarde.
Agora, é a vez de Ry Cooder prestar homenagem em música e em disco à alma perdida de uma Los Angeles que conheceu em criança e que nada tem a ver com o mundo sofisticado de Santa Monica e de West L.A.
“Ao fazer este disco”, explica Ry Cooder ao jornal “Los Angeles Times”, “estou apenas a dizer que me lembro de Los Angeles como costumava ser e que gostava dela assim”.
Ry Cooder começou por se inspirar nas fotos de Don Normark que conheceu há uns anos atrás numa exposição. Cooder contactou o fotógrafo e este contou-lhe do seu plano de fazer um documentário sobre os tempos em que andou por Chavez Ravine. Normark precisava de música para o filme e pediu-a a Ry Cooder. O filme acabaria por ser realizado por Jordan Mechner e produzido por Normark.
Para concretizar o projecto musical, este foi bater à porta de consagrados músicos latinos: Lalo Guerrero, famoso por misturar música mexicana com swing e rithm and blues, o acordeonista de tejano Flaco Jimenez, Don Tosti, que no final dos anos 40 misturou jazz e jump-blues com ritmos latinos para concretizar o primeiro disco latino a vender um milhão de unidades: “Pachuco Boogie”.
Ry Cooder não ficou satisfeito com a música feita a pedido de Normark e avançou para algo mais ambicioso. Investiu três anos e cerca de 350 mil dólares do seu próprio bolso para poder concretizar o que é agora o disco “Chavez Ravine”.
O resultado é um dos melhores trabalhos de sempre de Ry Cooder, uma autêntica banda sonora cantada em inglês e espanhol que mistura diferentes estilos latino-americanos e não só (corrido, conjunto, pop, swing, latin jazz, rithm and blues).
A aventura sonora latino-americana tem um pouco de tudo. Começa com a deliciosa e balanceada rumba “Poor Man’s Shangri-La” (a slide guitar e o órgão de Ry Cooder dançando com a percussão de Jim Keltner e os tímbalos de Joachim Cooder) mas abraça um leque variado de estilos.
O blues lento e arrastado, marcado pela slide de “It’s just work for me” evoca a demolição de Chavez Ravine. “Don’t call me red” utiliza o latin jazz para recordar a figura de Frank Wilkinson, o funcionário idealista que tinha um projecto habitacional para Chavez Ravine que satisfizesse os mais pobres e acabou por ser classificado de comunista.
Em “Don’t call me red”, a época e o contexto social em que Chavez Ravine desapareceu surgem em gravações de políticos da altura. Ouvem-se conversas, diálogos sobre “actividades comunistas” cruzados por arremedos de jazz, um baixo furioso, os coros fantasmagóricos de Juliette e Carla Commagere.
Tal como em “Buena Vista Social Club”, Ry Cooder vai buscar músicos veteranos que ajudem a recriar a época. Lalo Guerrero canta “Corrido de Boxeo” e evoca os boxers Carlos e Favela Chavez, que viviam em Chavez Ravine. Mais tarde, o mesmo Lalo Guerrero volta a cantar “Los Chucos Suaves”, um velho sucesso de 1949, muito apoiado pela percussão de Jim Keltner mas sobretudo pelo saxofone maravilhoso de Gil Bernal e o piano de Joe Rotondi.
Lalo, que faleceu este ano aos 88 anos, surge ainda na melancólica “Barrio Viejo”, acompanhado pelo acordeon de Flaco Jimenez. Lalo Guerrero canta e homenageia o bairro onde nasceu e cresceu em Tucson, Arizona e as memórias e os sentimentos são muito semelhantes aos de quem viveu em Chavez Ravine.
A pop emerge na velha “Three Cool Cats”, cantada por Willie Garcia, que nos anos 60, sob o nome artístico de Little Willie G, mantinha em East Los Angeles uma banda de rithm and blues chamada Three Midniters. A mistura de ritmos latinos com o r& b imprimido pelo orgão é perfeita, enriquecida mais uma vez pelo saxofone de Gil Bernal e os coros de Rudy Salas, Juliette Commagere e Carla Commagere.
Ambicioso, “Chavez Ravine”, o disco, é, pela sua complexidade musical e temática, uma das obras mais interessantes de sempre na carreira de Ry Cooder. Dificilmente se esgota numa audição.


“Chávez Ravine”
Ry Cooder
Nonesuch