B.LEZA BLUES
Uma das salas mais emblemáticas da Lisboa multicultural e multi-étnica corre o risco de fechar em breve. O prazo acordado entre a empresa proprietária do palácio do Largo do Conde Barão onde se encontra instalado o B.Leza e o locatário do mesmo , o Casa Pia Atlético Clube, já expirou. O espaço de música cabo-verdeana só se mantem aberto até o clube conseguir “um espaço digno” para colocar o espólio da sua biblioteca-museu, ainda nas instalações.
A crise do B. Leza começou em 2001 quando a empresa proprietária do espaço accionou em tribunal uma acção de despejo ao Casa Pia Atlético Clube que o sub-aluga aos gerentes do B.Leza. A acção de despejo foi contestada e as duas partes acabaram por chegar a um acordo: O Casa Pia Atlético Clube saía até 31 de Agosto de 2005, sofrendo penalização pelo tempo a mais que permanecer no local.
“Neste momento, estamos a ser penalizados. Só não saímos porque ainda não encontrámos um espaço digno para colocar a nossa biblioteca-museu. Esse é o meu grande problema neste momento”, explicou o presidente do clube, Carlos Rodrigues.
O presidente do Casa Pia Atlético Clube confessa que vai saír daquele palácio de “lágrimas nos olhos”- o clube está ali instalado desde 1920- e que tem pena pelo B.Leza mas não pode fazer nada: “Adoro o B.Leza, sou frequentador, acho aquele espaço o ideal para o clube funcionar mas a vida é assim. Acho que os gerentes são pessoas excepcionais e que vão conseguir outro lugar para o clube”. Carlos Rodrigues escusou-se, no entanto, a dizer quando é que o Casa Pia abandona as instalações.
O clube de música africana mas sobretudo cabo-verdeana, onde ainda na segunda-feira, dia 12, cantaram nomes como Tito Paris, Celina Pereira, Dany Silva, Nancy Vieira ou Maria Alice, tem programação agendada para Setembro e Outubro.
“ Nós gostaríamos de continuar”, explicou uma das gerentes, entre as arcadas do velho Palácio dos Almadas. “É um projecto válido, com muito valor, com destaque na noite lisboeta, multicultural. Não sabemos se fora deste espaço seria possível manter o mesmo projecto”.
Na segunda-feira passada, o B.Leza recebeu uma noite única de música cabo-verdeana que esgotou a lotação e enquanto houve pessoas que se deslocaram ao local convencidos que aquela era a última noite do clube, outros frequentadores nem sabiam que este pode fechar. “Eu não sabia”, dizia uma cliente habitual, “ e sinceramente tudo isto é muito triste. Se este espaço fechar, não existem alternativas. Não há nada parecido com isto”.
Sentado a uma mesa, acompanhado por elementos do seu staff e da esposa, Bárbara Guimarães, o candidato do Partido Socialista à câmara de Lisboa, Manuel Maria Carrilho não queria ouvir falar na possibilidade do clube fechar: “Comigo o B.Leza será sempre o local de Cabo-Verde. Venho muitas vezes aqui e posso dizer que comigo não fecha. É um santuário. Tudo farei para que continue. Lisboa tem de continuar a ser a capital da diversidade”.
Instalado no Palácio do século XVI, monumento nacional, que pertenceu aos Almadas, Provedores da Casa da Índia, o clube é um espaço único desde a arquitectura do páteo interior, das janelas de sacada e das arcadas até à intimidade e convívio cultural na sala e no corredor. As ventoinhas a rodar incessantes a espantar o calor, as gargalhadas de umas mesas para as outras, os versos do compositor cabo-verdeano B.Leza espalhados nas paredes cor de morango, o clube é um mundo à parte.
“Os outros espaços não disfrutam daquela sumptuosidade, daquele tecto infelizmente degradado. O B. Leza é uma sala que permite tanto estar na sala a ouvir a música como estar lá fora no corredor, no páteo. Há uma magia própria naquele clube”, explica a cantora Celina Pereira.
À beleza do espaço, alia-se a partilha cultural. “Quando eu penso no B.Leza, penso num espaço onde se vive, de verdade, a lusofonia. Ali há música africana ao vivo, há lançamentos de livros, exposições de pintura, fotografia, sessões de documentário. Para mim, é um espaço de encontro de culturas, é um emblema”, afirma Celina.
A cantora cabo-verdeana Nancy Vieira, que há três anos foi convidada a cantar todas as terças-feiras, não esquece que foi no B.Leza que ganhou projecção: “É o espaço onde comecei a ser conhecida, que me abriu as portas. Fez-me ter a certeza que queria ser uma cantora profissional”.
O ano que passou a cantar no clube foi de aprendizagem e amadurecimento. “Deram-me uma noite especial, ganhei o público do Tito Paris, que era quem fazia as terças-feiras. Quando comecei a cantar ainda andava na faculdade. O clube deu-me muita prática. Os músicos da Banda do B.Leza são dos melhores músicos que nós temos”, explica.
O músico Tito Paris, que foi sócio do “B.Leza” no seu primeiro ano de actividade, em 1995, tem ali enterradas muitas recordações. Foi ali que gravou o seu disco duplo ao vivo, em 1998, foi ali que tocou todas as semanas durante bastante tempo.
“Fui eu que dei o nome ao espaço. Era para ser chamado B. Leza Morna Jazz. Desenhei o logotipo, dei a cara pelo B.Leza porque era o mais conhecido, ía à rádio, dava entrevistas,
ainda tenho alguns dos três mil cartões de convite que assinei para a inauguração”, explica.
Em relação ao “Baile”, o espaço de música africana que ali existiu de 89 a 95, Tito e os outros sócios efectuaram modificações. “O B.Leza era mais requintado, até o nome era doce. As pessoas encontravam boa música, bom ambiente. Mudámos a decoração, alargámos o palco, mudámos o sistema de luzes, mudámos as cortinas...”
Tito Paris defende que o clube é responsável por revolucionar a música cabo-verdeana: “Conseguiu juntar várias músicos de qualidade no mesmo espaço e as pessoas puderam passar a ir ouvir muitos cantores de renome. A minha ideia era criar um espaço que começasse às 21h00 com um artista e onde só se dançasse a partir da meia noite. Não consegui, os outros sócios não entenderam assim, vim-me embora”.
O cantor e compositor fala do B.Leza, no entanto, como de uma oportunidade perdida: “O projecto podia ser muito bonito mas a verdade é que aquela casa foi abandonada e deixaram degradar o ambiente há muito tempo”
Tito Paris diz que se a casa fosse sua a primeira coisa que fazia era fechar três meses para remodelação. “Depois, criava disciplina de trabalho, fazia mais publicidade, tinha concertos de artistas diferentes todos os dias das 21h00 à meia-noite, servia refeições e só depois das 0h00 é que tocava o grupo da casa”.
Agora, o clube com um futuro incerto, Tito Paris abana a cabeça: “Fico com pena porque se trata de uma referência no espaço lusófono e da música cabo-verdeana. Fico triste por não poder subir mais a um palco que eu ajudei a transformar em 95. Continuo a não acreditar que o B.Leza possa fechar”, afirma.
Nancy Vieira, essa, nem sabe o que dizer: “É uma tristeza. Só de pensar no dia em que nos lembrar-mos de saír à noite e já não tivermos o B.Leza. Aquele sítio é como um íman. Parece que o carro vai sózinho até lá”.
As noites loucas e quentes do Largo do Conde Barão
A sala do Casa Pia Atlético Clube viveu As Noites Longas nos anos 80, nasceu como espaço de música cabo-verdeana ao vivo com O Baile e manteve-se até hoje como B.Leza
Entre 1985 e 1989, quatro anos antes de ser transformado em O Baile e dez anos antes de se transformar em B.Leza, a sala do palácio do Largo do Conde Barão protagonizou das noites mais animadas e multiculturais da Lisboa dos anos 80. “Eu trabalhava no Rockhouse, no Bairro Alto, quando um amigo meu me convidou a ir à sede do Casa Pia Atlético Clube ouvir o Basílio, um músico moçambicano”, recorda hoje Zé da Guiné.
Zé, conhecido pelo porte atlético e vestimenta à gangster, chapéu, sobretudo, calças de golfe, é uma personagem carismática. Foi modelo, empresário, alfaiate, artista plástico. “Fiquei fascinado quando entrei naquela sala, aqueles interiores, tudo. Pensei logo em organizar ali festas. O problema era o dinheiro, ganhava pouco. Eu e outro colega alugámos aquilo por dez contos, era muito dinheiro na época”.
Apaixonado pelo vinil, Zé da Guiné levou os seus próprios discos. Na primeira das que viriam a ser conhecidas como “Noites Longas”, passou funk, jazz. “Tive pouca gente”, lembra. “Na segunda noite, sempre à sexta-feira, lembrei-me de convidar o Pedro Ayres de Magalhães e a Fernandinha, que tinha o Café-Concerto, no Bairro Alto. Veio muita gente”.
À terceira sexta-feira, Zé da Guiné passou a trabalhar com Hernâni Miguel e Mário Duarte. “Passou a aparecer muita gente. Naquela época havia poucos espaços. Havia o Frágil, o Trumps, o Jukebox...Aparecia lá a malta gira, a malta com onda. Entrava-se e via-se o Miguel Esteves Cardoso, a Ana Salazar, o Eduardo Prado Coelho...mas não íam lá para se mostrar, não era como hoje em dia...”, conta Zé da Guiné. “O Pedro Cabrita Reis, por exemplo, fez lá um painel que acabou todo escavacado”.
No “Noites Longas” sucederam-se os lançamentos de livros, as passagens de moda, os concertos dos Xutos e Pontapés, Ena Pá 2000, Delfins. Os últimos frequentadores saíam às 7h00 da manhã ao som de big bands de jazz como a de Benny Goodman, depois de comerem bifanas ou sopa e esvaziarem a cerveja. “Aquilo era uma loucura. As pessoas ficavam na rua, no páteo, não conseguiam passar no corredor. A comida esgotava, esgotava a cerveja...”, lembra.
A música, tal como a clientela, era eclética. “Eu misturava música africana com música portuguesa, reggae, jazz dancável, tudo o que gostava. Não fazia aquilo por comércio, por diversão, pela onda. O dinheiro entrava e saía. Ía logo à Feira da Ladra gastar o dinheiro em vinil”, lembra Zé da Guiné.
Hoje, o criador do “Noites Longas” e ex-proprietário do clube de jazz Bebop (94-99) afirma: “Fiquei teso mas feliz. Mas o meu sonho é um clube de jazz, gostava muito de conceber de novo um clube de jazz. Lisboa tem espaços lindíssimos e eu conheço Lisboa como ninguém”.
O Baile ou o início da música cabo-verdeana
Em 1989, a sala do Largo Conde Barão novamente vaga, Augusto Ribeiro, músico de Dany Silva. convenceu o amigo de longa data Saudade e Silva a proporem ao Casa Pia Atlético Clube alugarem o espaço. “Eu tocava com o Dany Silva no então Clave Di Nos. Depois, quando o Dany Silva saiu desse bar, tivemos a ideia de abrir ali um espaço para ele tocar”, conta Augusto Ribeiro 16 anos mais tarde.
Augusto e Saudade e Silva fizeram obras, contrataram músicos, cortinados, luzes e escolheram o nome de “Baile” para o espaço. “A ideia era precisamente pôr as pessoas a dançar ao som da música porque no Clave Di Nos não havia condições para dançar”. As obras já decorriam quando Dany Silva, por razões profissionais, não pôde alinhar no projecto.
“Já tínhamos milhares de contos ali empatados”, lembra Augusto Ribeiro, “nessa mesma noite fui jantar com o Paulino Vieira e pronto, quem arrancou com “O Baile” em Dezembro de 89 foi ele”.
O espaço, recorda hoje o cantor Tito Paris, era diferente do B’Leza: “Era muito claro, com muitas luzes, tudo branco. Tinha uns vasos artificiais junto à pista”. Augusto Ribeiro lembra também o projector de slides com ambientes tropicais e o ecrã “enorme”. A cantora Celina Pereira, essa, recorda com orgulho e saudade que foi no “O Baile” que lançou o seu trabalho sobre tradições orais, em Janeiro de 1990.
“O formato do Baile, o conceito que mais tarde, em 95, deu lugar ao B’Leza, foi criado por mim”, diz Augusto Ribeiro. “Durante os anos de 90 e 91, eu estava lá em permanência porque o Saudade e Silva era advogado e não tinha tempo para se ocupar do agendamento dos músicos, por exemplo”.
Nessa época, para além de Paulino Vieira, que tocava lá todos os dias, actuaram no Baile Cesária Évora, a banda Tubarões, Sérgio Godinho, Vitorino. “Na altura”, recorda Augusto Ribeiro, “eram os músicos mais conhecidos”. A clientela, essa, tinha uma grande percentagem de brancos. “Mais de cinquenta por cento”, afirma o ex-gerente do clube.
Augusto lembra agora que os dois anos que passou à frente da sala do Largo do Conde Barão foram cansativos. “Eu agendava os músicos, eu montava o som, os projectores com os músicos. E tínhamos o John, uma figura fora de série que era baterista, passava música como DJ e ainda ía à cozinha se fosse preciso lavar pratos”.
No ano de 91, Augusto Ribeiro fez a noite de fim de ano e saiu. “Estava farto daquilo. A partir daí, eu e o meu sócio entrámos em conflito. Depois, adoeceu e veio a falecer. Nunca nunca mais lá fui nem nunca fui compensado financeiramente pelo dinheiro que lá empatei”, conta.
Hoje, muitos anos depois, é com mágoa que Augusto Ribeiro reconhece o sucesso que o B’Leza obteve: “A casa estava feita e eles souberam explorar bem o marketing. O B’Leza não arrancou do ponto zero. O conceito subjacente ao nome fui eu que o dei”, afirma.
O B.Leza imortalizado em disco
Em 10 anos, foram gravados dois discos ao vivo no clube do Largo do Conde Barão. Em Abril de 1998, Tito Paris gravou ali o seu famoso e duplo “Tito Paris Ao Vivo No B.Leza”, editado pela Lusafrica. Nesse álbum surgem como convidados especiais Rui Veloso, Dany Silva, Boy Ge Mendes e Pedro Jóia. O disco obteve grande projecção internacional e o crítico do prestigiado All-Music Guide recomenda-o vivamente aos amantes da música cabo-verdeana, elogiando a “energia” e a “qualidade da gravação”.
Mais tarde, em 2003, a editora Movieplay lançou “Ao Vivo No B.Leza”, um disco que contem gravações feitas naquela sala em Janeiro e Junho de 2002. Neste último, participam SAP, Nancy Vieira, BIUS, Filipe Mukenga, Maria Alice, Filipa Pais, Dany Silva, Bana. Este álbum, produzido por Alcides Nascimento, permite também ouvir os músicos que têm dado vida à ao espaço: Toy Vieira (piano e sintetizador), Vaiss (guitarra solo, viola e cavaquinho), Zé António (guitarra ritmo), Manuel Paris (baixo), Djim Djob (baixo), Moises Ramos (piano), Guto (saxofone), Miguel Gonçalves (trompete), Galiano Neto (percussão) e Kau Paris (bateria).
Outros espaços com música cabo-verdeana ao vivo
En’Clave (antigo Bana)
Rua do Sol ao Rato, 71 A Tel. (01) 388 8738
O lugar histórico da música cabo-verdeana em Lisboa. Fundado em 1976 pelo cantor Bana. É restaurante africano e tem música ao vivo.
Casa da Morna
Rua Rodrigues Faria 21 (Alcântara)
Lisboa
Um restaurante mais elitista do que o En’Clave. Além da comida cabo-verdeana, apresenta música ao vivo. Apresenta um artista cabo-verdeano diferente todas as terça-feiras à noite ao vivo. Todos os dias, às 23h00, cantam Dany Silva e Tito Paris.
A crise do B. Leza começou em 2001 quando a empresa proprietária do espaço accionou em tribunal uma acção de despejo ao Casa Pia Atlético Clube que o sub-aluga aos gerentes do B.Leza. A acção de despejo foi contestada e as duas partes acabaram por chegar a um acordo: O Casa Pia Atlético Clube saía até 31 de Agosto de 2005, sofrendo penalização pelo tempo a mais que permanecer no local.
“Neste momento, estamos a ser penalizados. Só não saímos porque ainda não encontrámos um espaço digno para colocar a nossa biblioteca-museu. Esse é o meu grande problema neste momento”, explicou o presidente do clube, Carlos Rodrigues.
O presidente do Casa Pia Atlético Clube confessa que vai saír daquele palácio de “lágrimas nos olhos”- o clube está ali instalado desde 1920- e que tem pena pelo B.Leza mas não pode fazer nada: “Adoro o B.Leza, sou frequentador, acho aquele espaço o ideal para o clube funcionar mas a vida é assim. Acho que os gerentes são pessoas excepcionais e que vão conseguir outro lugar para o clube”. Carlos Rodrigues escusou-se, no entanto, a dizer quando é que o Casa Pia abandona as instalações.
O clube de música africana mas sobretudo cabo-verdeana, onde ainda na segunda-feira, dia 12, cantaram nomes como Tito Paris, Celina Pereira, Dany Silva, Nancy Vieira ou Maria Alice, tem programação agendada para Setembro e Outubro.
“ Nós gostaríamos de continuar”, explicou uma das gerentes, entre as arcadas do velho Palácio dos Almadas. “É um projecto válido, com muito valor, com destaque na noite lisboeta, multicultural. Não sabemos se fora deste espaço seria possível manter o mesmo projecto”.
Na segunda-feira passada, o B.Leza recebeu uma noite única de música cabo-verdeana que esgotou a lotação e enquanto houve pessoas que se deslocaram ao local convencidos que aquela era a última noite do clube, outros frequentadores nem sabiam que este pode fechar. “Eu não sabia”, dizia uma cliente habitual, “ e sinceramente tudo isto é muito triste. Se este espaço fechar, não existem alternativas. Não há nada parecido com isto”.
Sentado a uma mesa, acompanhado por elementos do seu staff e da esposa, Bárbara Guimarães, o candidato do Partido Socialista à câmara de Lisboa, Manuel Maria Carrilho não queria ouvir falar na possibilidade do clube fechar: “Comigo o B.Leza será sempre o local de Cabo-Verde. Venho muitas vezes aqui e posso dizer que comigo não fecha. É um santuário. Tudo farei para que continue. Lisboa tem de continuar a ser a capital da diversidade”.
Instalado no Palácio do século XVI, monumento nacional, que pertenceu aos Almadas, Provedores da Casa da Índia, o clube é um espaço único desde a arquitectura do páteo interior, das janelas de sacada e das arcadas até à intimidade e convívio cultural na sala e no corredor. As ventoinhas a rodar incessantes a espantar o calor, as gargalhadas de umas mesas para as outras, os versos do compositor cabo-verdeano B.Leza espalhados nas paredes cor de morango, o clube é um mundo à parte.
“Os outros espaços não disfrutam daquela sumptuosidade, daquele tecto infelizmente degradado. O B. Leza é uma sala que permite tanto estar na sala a ouvir a música como estar lá fora no corredor, no páteo. Há uma magia própria naquele clube”, explica a cantora Celina Pereira.
À beleza do espaço, alia-se a partilha cultural. “Quando eu penso no B.Leza, penso num espaço onde se vive, de verdade, a lusofonia. Ali há música africana ao vivo, há lançamentos de livros, exposições de pintura, fotografia, sessões de documentário. Para mim, é um espaço de encontro de culturas, é um emblema”, afirma Celina.
A cantora cabo-verdeana Nancy Vieira, que há três anos foi convidada a cantar todas as terças-feiras, não esquece que foi no B.Leza que ganhou projecção: “É o espaço onde comecei a ser conhecida, que me abriu as portas. Fez-me ter a certeza que queria ser uma cantora profissional”.
O ano que passou a cantar no clube foi de aprendizagem e amadurecimento. “Deram-me uma noite especial, ganhei o público do Tito Paris, que era quem fazia as terças-feiras. Quando comecei a cantar ainda andava na faculdade. O clube deu-me muita prática. Os músicos da Banda do B.Leza são dos melhores músicos que nós temos”, explica.
O músico Tito Paris, que foi sócio do “B.Leza” no seu primeiro ano de actividade, em 1995, tem ali enterradas muitas recordações. Foi ali que gravou o seu disco duplo ao vivo, em 1998, foi ali que tocou todas as semanas durante bastante tempo.
“Fui eu que dei o nome ao espaço. Era para ser chamado B. Leza Morna Jazz. Desenhei o logotipo, dei a cara pelo B.Leza porque era o mais conhecido, ía à rádio, dava entrevistas,
ainda tenho alguns dos três mil cartões de convite que assinei para a inauguração”, explica.
Em relação ao “Baile”, o espaço de música africana que ali existiu de 89 a 95, Tito e os outros sócios efectuaram modificações. “O B.Leza era mais requintado, até o nome era doce. As pessoas encontravam boa música, bom ambiente. Mudámos a decoração, alargámos o palco, mudámos o sistema de luzes, mudámos as cortinas...”
Tito Paris defende que o clube é responsável por revolucionar a música cabo-verdeana: “Conseguiu juntar várias músicos de qualidade no mesmo espaço e as pessoas puderam passar a ir ouvir muitos cantores de renome. A minha ideia era criar um espaço que começasse às 21h00 com um artista e onde só se dançasse a partir da meia noite. Não consegui, os outros sócios não entenderam assim, vim-me embora”.
O cantor e compositor fala do B.Leza, no entanto, como de uma oportunidade perdida: “O projecto podia ser muito bonito mas a verdade é que aquela casa foi abandonada e deixaram degradar o ambiente há muito tempo”
Tito Paris diz que se a casa fosse sua a primeira coisa que fazia era fechar três meses para remodelação. “Depois, criava disciplina de trabalho, fazia mais publicidade, tinha concertos de artistas diferentes todos os dias das 21h00 à meia-noite, servia refeições e só depois das 0h00 é que tocava o grupo da casa”.
Agora, o clube com um futuro incerto, Tito Paris abana a cabeça: “Fico com pena porque se trata de uma referência no espaço lusófono e da música cabo-verdeana. Fico triste por não poder subir mais a um palco que eu ajudei a transformar em 95. Continuo a não acreditar que o B.Leza possa fechar”, afirma.
Nancy Vieira, essa, nem sabe o que dizer: “É uma tristeza. Só de pensar no dia em que nos lembrar-mos de saír à noite e já não tivermos o B.Leza. Aquele sítio é como um íman. Parece que o carro vai sózinho até lá”.
As noites loucas e quentes do Largo do Conde Barão
A sala do Casa Pia Atlético Clube viveu As Noites Longas nos anos 80, nasceu como espaço de música cabo-verdeana ao vivo com O Baile e manteve-se até hoje como B.Leza
Entre 1985 e 1989, quatro anos antes de ser transformado em O Baile e dez anos antes de se transformar em B.Leza, a sala do palácio do Largo do Conde Barão protagonizou das noites mais animadas e multiculturais da Lisboa dos anos 80. “Eu trabalhava no Rockhouse, no Bairro Alto, quando um amigo meu me convidou a ir à sede do Casa Pia Atlético Clube ouvir o Basílio, um músico moçambicano”, recorda hoje Zé da Guiné.
Zé, conhecido pelo porte atlético e vestimenta à gangster, chapéu, sobretudo, calças de golfe, é uma personagem carismática. Foi modelo, empresário, alfaiate, artista plástico. “Fiquei fascinado quando entrei naquela sala, aqueles interiores, tudo. Pensei logo em organizar ali festas. O problema era o dinheiro, ganhava pouco. Eu e outro colega alugámos aquilo por dez contos, era muito dinheiro na época”.
Apaixonado pelo vinil, Zé da Guiné levou os seus próprios discos. Na primeira das que viriam a ser conhecidas como “Noites Longas”, passou funk, jazz. “Tive pouca gente”, lembra. “Na segunda noite, sempre à sexta-feira, lembrei-me de convidar o Pedro Ayres de Magalhães e a Fernandinha, que tinha o Café-Concerto, no Bairro Alto. Veio muita gente”.
À terceira sexta-feira, Zé da Guiné passou a trabalhar com Hernâni Miguel e Mário Duarte. “Passou a aparecer muita gente. Naquela época havia poucos espaços. Havia o Frágil, o Trumps, o Jukebox...Aparecia lá a malta gira, a malta com onda. Entrava-se e via-se o Miguel Esteves Cardoso, a Ana Salazar, o Eduardo Prado Coelho...mas não íam lá para se mostrar, não era como hoje em dia...”, conta Zé da Guiné. “O Pedro Cabrita Reis, por exemplo, fez lá um painel que acabou todo escavacado”.
No “Noites Longas” sucederam-se os lançamentos de livros, as passagens de moda, os concertos dos Xutos e Pontapés, Ena Pá 2000, Delfins. Os últimos frequentadores saíam às 7h00 da manhã ao som de big bands de jazz como a de Benny Goodman, depois de comerem bifanas ou sopa e esvaziarem a cerveja. “Aquilo era uma loucura. As pessoas ficavam na rua, no páteo, não conseguiam passar no corredor. A comida esgotava, esgotava a cerveja...”, lembra.
A música, tal como a clientela, era eclética. “Eu misturava música africana com música portuguesa, reggae, jazz dancável, tudo o que gostava. Não fazia aquilo por comércio, por diversão, pela onda. O dinheiro entrava e saía. Ía logo à Feira da Ladra gastar o dinheiro em vinil”, lembra Zé da Guiné.
Hoje, o criador do “Noites Longas” e ex-proprietário do clube de jazz Bebop (94-99) afirma: “Fiquei teso mas feliz. Mas o meu sonho é um clube de jazz, gostava muito de conceber de novo um clube de jazz. Lisboa tem espaços lindíssimos e eu conheço Lisboa como ninguém”.
O Baile ou o início da música cabo-verdeana
Em 1989, a sala do Largo Conde Barão novamente vaga, Augusto Ribeiro, músico de Dany Silva. convenceu o amigo de longa data Saudade e Silva a proporem ao Casa Pia Atlético Clube alugarem o espaço. “Eu tocava com o Dany Silva no então Clave Di Nos. Depois, quando o Dany Silva saiu desse bar, tivemos a ideia de abrir ali um espaço para ele tocar”, conta Augusto Ribeiro 16 anos mais tarde.
Augusto e Saudade e Silva fizeram obras, contrataram músicos, cortinados, luzes e escolheram o nome de “Baile” para o espaço. “A ideia era precisamente pôr as pessoas a dançar ao som da música porque no Clave Di Nos não havia condições para dançar”. As obras já decorriam quando Dany Silva, por razões profissionais, não pôde alinhar no projecto.
“Já tínhamos milhares de contos ali empatados”, lembra Augusto Ribeiro, “nessa mesma noite fui jantar com o Paulino Vieira e pronto, quem arrancou com “O Baile” em Dezembro de 89 foi ele”.
O espaço, recorda hoje o cantor Tito Paris, era diferente do B’Leza: “Era muito claro, com muitas luzes, tudo branco. Tinha uns vasos artificiais junto à pista”. Augusto Ribeiro lembra também o projector de slides com ambientes tropicais e o ecrã “enorme”. A cantora Celina Pereira, essa, recorda com orgulho e saudade que foi no “O Baile” que lançou o seu trabalho sobre tradições orais, em Janeiro de 1990.
“O formato do Baile, o conceito que mais tarde, em 95, deu lugar ao B’Leza, foi criado por mim”, diz Augusto Ribeiro. “Durante os anos de 90 e 91, eu estava lá em permanência porque o Saudade e Silva era advogado e não tinha tempo para se ocupar do agendamento dos músicos, por exemplo”.
Nessa época, para além de Paulino Vieira, que tocava lá todos os dias, actuaram no Baile Cesária Évora, a banda Tubarões, Sérgio Godinho, Vitorino. “Na altura”, recorda Augusto Ribeiro, “eram os músicos mais conhecidos”. A clientela, essa, tinha uma grande percentagem de brancos. “Mais de cinquenta por cento”, afirma o ex-gerente do clube.
Augusto lembra agora que os dois anos que passou à frente da sala do Largo do Conde Barão foram cansativos. “Eu agendava os músicos, eu montava o som, os projectores com os músicos. E tínhamos o John, uma figura fora de série que era baterista, passava música como DJ e ainda ía à cozinha se fosse preciso lavar pratos”.
No ano de 91, Augusto Ribeiro fez a noite de fim de ano e saiu. “Estava farto daquilo. A partir daí, eu e o meu sócio entrámos em conflito. Depois, adoeceu e veio a falecer. Nunca nunca mais lá fui nem nunca fui compensado financeiramente pelo dinheiro que lá empatei”, conta.
Hoje, muitos anos depois, é com mágoa que Augusto Ribeiro reconhece o sucesso que o B’Leza obteve: “A casa estava feita e eles souberam explorar bem o marketing. O B’Leza não arrancou do ponto zero. O conceito subjacente ao nome fui eu que o dei”, afirma.
O B.Leza imortalizado em disco
Em 10 anos, foram gravados dois discos ao vivo no clube do Largo do Conde Barão. Em Abril de 1998, Tito Paris gravou ali o seu famoso e duplo “Tito Paris Ao Vivo No B.Leza”, editado pela Lusafrica. Nesse álbum surgem como convidados especiais Rui Veloso, Dany Silva, Boy Ge Mendes e Pedro Jóia. O disco obteve grande projecção internacional e o crítico do prestigiado All-Music Guide recomenda-o vivamente aos amantes da música cabo-verdeana, elogiando a “energia” e a “qualidade da gravação”.
Mais tarde, em 2003, a editora Movieplay lançou “Ao Vivo No B.Leza”, um disco que contem gravações feitas naquela sala em Janeiro e Junho de 2002. Neste último, participam SAP, Nancy Vieira, BIUS, Filipe Mukenga, Maria Alice, Filipa Pais, Dany Silva, Bana. Este álbum, produzido por Alcides Nascimento, permite também ouvir os músicos que têm dado vida à ao espaço: Toy Vieira (piano e sintetizador), Vaiss (guitarra solo, viola e cavaquinho), Zé António (guitarra ritmo), Manuel Paris (baixo), Djim Djob (baixo), Moises Ramos (piano), Guto (saxofone), Miguel Gonçalves (trompete), Galiano Neto (percussão) e Kau Paris (bateria).
Outros espaços com música cabo-verdeana ao vivo
En’Clave (antigo Bana)
Rua do Sol ao Rato, 71 A Tel. (01) 388 8738
O lugar histórico da música cabo-verdeana em Lisboa. Fundado em 1976 pelo cantor Bana. É restaurante africano e tem música ao vivo.
Casa da Morna
Rua Rodrigues Faria 21 (Alcântara)
Lisboa
Um restaurante mais elitista do que o En’Clave. Além da comida cabo-verdeana, apresenta música ao vivo. Apresenta um artista cabo-verdeano diferente todas as terça-feiras à noite ao vivo. Todos os dias, às 23h00, cantam Dany Silva e Tito Paris.
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