A OPINIÃO DO ESTADO DE SÃO PAULO
"Jornalismo irresponsável"
"A fúria desencadeada no mundo árabe-muçulmano pela charge publicada originalmente em setembro em um obscuro jornal dinamarquês e republicada na Noruega, em janeiro, é a resposta que se poderia esperar à monumental irresponsabilidade de quem autorizou a sua publicação. O desenho mostra um iracundo profeta Maomé com um turbante em forma de bomba, a que não falta nem o pavio. Para as multidões que tomaram as ruas no Oriente Médio, queimando embaixadas dinamarquesas e norueguesas, a charge é uma das piores agressões que se poderiam cometer contra a sua religião, que veda taxativamente a representação da efígie de Maomé. O tabu nasceu da sua condenação à idolatria.
Mas, ao acrescentar à caricatura do profeta o símbolo universal da violência indistinta, o desenhista e o seu jornal não se limitaram a escarnecer de um credo. A sua estereotipada mensagem é inequívoca: islamismo e terrorismo são uma coisa só, todo muçulmano é terrorista. A isso se chama islamofobia, uma expressão de hostilidade racial que, como todas as demais, deveria merecer o vivo repúdio do mundo civilizado. É verdade que, em razão do conflito israelense-palestino, a cultura popular nos países muçulmanos vem se encharcando de anti-semitismo. Isso, no entanto, não atenua a ofensa praticada por um órgão de imprensa de um país tido como um dos mais iluminados do mundo.
Pior foi a espantosa decisão de órgãos da imprensa do porte do alemão Die Welt e dos franceses Le Monde e France-Soir de republicar a charge inflamatória para se solidarizar com o Morgenavisen Jyllands-Posten (que por sinal se desculpou pela desfeita) e para afirmar o princípio da liberdade de imprensa - uma raridade nos países muçulmanos. O Ocidente não seria o que é, efetivamente, sem o direito à livre circulação de idéias, opiniões, informações e expressões artísticas. Mesmo esse pilar das sociedades democráticas, porém, não existe no vácuo. Nas palavras do jornal londrino The Guardian, "há limites e fronteiras - de gosto, leis, convenções, princípios ou juízos. Nada disso pode ser automaticamente desconsiderado invocando-se o valor maior. O direito de publicar não obriga a fazê-lo".
Os islâmicos podem ser criticados, como foram por um de seus mais importantes pensadores na Europa, Tariq Ramadan, em entrevista ao Global Viewpoint (transcrita no Estado), por "reagir com exageros a provocações". A onda de violência, estimulada ou aceita por mais de um governo, choca por seu primitivismo. Mas Ramadan também tem razão ao dizer: "Será que eu ando por aí insultando as pessoas porque tenho liberdade para isso? Não. Isso se chama responsabilidade cívica." O problema contém ainda uma dimensão mais profunda, relacionada com as características menos louváveis da cultura ocidental nos dias atuais, associada ao vale-tudo a que se entregaram a mass media e a indústria do entretenimento, degradando a liberdade em libertinagem e licenciosidade.
Curiosamente, veio do Brasil talvez a melhor síntese da crise da charge, tendo como pano de fundo a disseminação da baixaria, sob todas as formas, na chamada "civilização do espetáculo". Falando ao Estado, o xeque Jihad Hassan Hammadeh, radicado em São Paulo, tocou no nervo da questão. "O Ocidente perdeu o valor do sagrado", constatou. "Se os ocidentais não respeitam os seus valores, imagine os dos outros." De fato, a permissividade midiática e a aversão do jornalismo de tablóide a educar o público se entrelaçam para embotar a capacidade do homem comum ocidental de entender as diferenças culturais que se manifestam especialmente em relação ao "valor do sagrado" em outros ambientes.
Na sexta-feira, o dinamarquês Posten afirma que "subestimou o sentimento de muitos muçulmanos sobre seu profeta" e que, se soubesse das conseqüências, não teria publicado a charge revoltante. O argumento é pobre. Ela não deveria ter sido publicada, mesmo que não fosse previsível a reação que provocou. Primeiro, porque não cabe a um jornal criticar - muito menos escarnecer de - valores culturais com os quais não comunga. Segundo, porque a publicação embutiu a intenção de ofender toda uma parcela da humanidade que se identifica, acima das etnias que a compõem, com um credo religioso. À deliberada profanação de um valor alheio somou-se a estigmatização da cultura que o abriga - quando a islamofobia cresce a olhos vistos na Europa".
Editorial do jornal "Estado de São Paulo"
"A fúria desencadeada no mundo árabe-muçulmano pela charge publicada originalmente em setembro em um obscuro jornal dinamarquês e republicada na Noruega, em janeiro, é a resposta que se poderia esperar à monumental irresponsabilidade de quem autorizou a sua publicação. O desenho mostra um iracundo profeta Maomé com um turbante em forma de bomba, a que não falta nem o pavio. Para as multidões que tomaram as ruas no Oriente Médio, queimando embaixadas dinamarquesas e norueguesas, a charge é uma das piores agressões que se poderiam cometer contra a sua religião, que veda taxativamente a representação da efígie de Maomé. O tabu nasceu da sua condenação à idolatria.
Mas, ao acrescentar à caricatura do profeta o símbolo universal da violência indistinta, o desenhista e o seu jornal não se limitaram a escarnecer de um credo. A sua estereotipada mensagem é inequívoca: islamismo e terrorismo são uma coisa só, todo muçulmano é terrorista. A isso se chama islamofobia, uma expressão de hostilidade racial que, como todas as demais, deveria merecer o vivo repúdio do mundo civilizado. É verdade que, em razão do conflito israelense-palestino, a cultura popular nos países muçulmanos vem se encharcando de anti-semitismo. Isso, no entanto, não atenua a ofensa praticada por um órgão de imprensa de um país tido como um dos mais iluminados do mundo.
Pior foi a espantosa decisão de órgãos da imprensa do porte do alemão Die Welt e dos franceses Le Monde e France-Soir de republicar a charge inflamatória para se solidarizar com o Morgenavisen Jyllands-Posten (que por sinal se desculpou pela desfeita) e para afirmar o princípio da liberdade de imprensa - uma raridade nos países muçulmanos. O Ocidente não seria o que é, efetivamente, sem o direito à livre circulação de idéias, opiniões, informações e expressões artísticas. Mesmo esse pilar das sociedades democráticas, porém, não existe no vácuo. Nas palavras do jornal londrino The Guardian, "há limites e fronteiras - de gosto, leis, convenções, princípios ou juízos. Nada disso pode ser automaticamente desconsiderado invocando-se o valor maior. O direito de publicar não obriga a fazê-lo".
Os islâmicos podem ser criticados, como foram por um de seus mais importantes pensadores na Europa, Tariq Ramadan, em entrevista ao Global Viewpoint (transcrita no Estado), por "reagir com exageros a provocações". A onda de violência, estimulada ou aceita por mais de um governo, choca por seu primitivismo. Mas Ramadan também tem razão ao dizer: "Será que eu ando por aí insultando as pessoas porque tenho liberdade para isso? Não. Isso se chama responsabilidade cívica." O problema contém ainda uma dimensão mais profunda, relacionada com as características menos louváveis da cultura ocidental nos dias atuais, associada ao vale-tudo a que se entregaram a mass media e a indústria do entretenimento, degradando a liberdade em libertinagem e licenciosidade.
Curiosamente, veio do Brasil talvez a melhor síntese da crise da charge, tendo como pano de fundo a disseminação da baixaria, sob todas as formas, na chamada "civilização do espetáculo". Falando ao Estado, o xeque Jihad Hassan Hammadeh, radicado em São Paulo, tocou no nervo da questão. "O Ocidente perdeu o valor do sagrado", constatou. "Se os ocidentais não respeitam os seus valores, imagine os dos outros." De fato, a permissividade midiática e a aversão do jornalismo de tablóide a educar o público se entrelaçam para embotar a capacidade do homem comum ocidental de entender as diferenças culturais que se manifestam especialmente em relação ao "valor do sagrado" em outros ambientes.
Na sexta-feira, o dinamarquês Posten afirma que "subestimou o sentimento de muitos muçulmanos sobre seu profeta" e que, se soubesse das conseqüências, não teria publicado a charge revoltante. O argumento é pobre. Ela não deveria ter sido publicada, mesmo que não fosse previsível a reação que provocou. Primeiro, porque não cabe a um jornal criticar - muito menos escarnecer de - valores culturais com os quais não comunga. Segundo, porque a publicação embutiu a intenção de ofender toda uma parcela da humanidade que se identifica, acima das etnias que a compõem, com um credo religioso. À deliberada profanação de um valor alheio somou-se a estigmatização da cultura que o abriga - quando a islamofobia cresce a olhos vistos na Europa".
Editorial do jornal "Estado de São Paulo"
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