estradas perdidas

Atrás de casa, encoberta por tufos de erva daninha, silvas e bidões abandonados, o comboio de janelas iluminadas vinha das Quintãs e silvou depois do túnel em curva, em direcção a Aveiro. Ali ao lado há uma estrada, a minha primeira estrada. Mulheres e homens cruzam-na impelindo teimosamente os pedais das bicicletas. Junto à vitrine de um pronto-a-vestir lê-se "Modas Katita". De uma taberna, saem dois homens que se dirigem para duas Famel-Zundapp. Estrada perdida.

2006-02-07

"Irracionalidade"

"Irracionalidade"
António José Teixeira, no Diário de Notícias de hoje

"O problema contemporâneo, talvez o problema de todos os tempos, é a dificuldade em lidar com a irracionalidade e a intolerância. É o que observamos hoje. O mundo incendiou-se por causa de umas caricaturas reles, pretexto para provocações e atentados em nome da liberdade e da fé. A mistura dificilmente poderia ser mais explosiva. Se alguém, deliberadamente, quisesse provar o choque de civilizações de Samuel Huntington não teria melhor expediente incendiário que as caricaturas dinamarquesas. Nem a invasão americana do Iraque conseguiu tamanho tumulto no mundo muçulmano. Vale a pena colocar a nu o contexto do conflito, agora que entraram em guerra os valores da democracia e o ressentimento do islão. Tudo começou com um livro de um xenófobo que sugeriu "pichar o Alcorão com sangue menstrual" e que se queixou de não encontrar desenhadores para caricaturar Maomé. A verdade é que os encontrou. Mas o pretexto estava dado para o jornal Jyllands-Posten convidar desenhadores a idêntico exercício. É aí que surgem 12 caricaturas e um editorial em que se invectivam os muçulmanos, desafiados a aprender que a liberdade de expressão deve implicar "blasfemar e humilhar" o islão. Sabe-se agora, segundo o diário britânico Guardian, que o mesmo jornal tinha rejeitado há três anos a publicação de caricaturas de Cristo por correrem o risco de ser consideradas ofensivas para os seus leitores... Não está em causa a coerência de procedimentos, até porque qualquer das situações se pode enquadrar no livre arbítrio das sociedades abertas, mesmo quando se ultrapassa o risco da dignidade e da lei. O que está em causa é a trágica ironia de a afirmação dos valores civilizacionais da liberdade e da democracia estar a ser feita a partir de humilhantes e gratuitas caricaturas religiosas. Não há dúvida de que a democracia suporta a falta de sensibilidade e de bom senso e que a liberdade de expressão "é absoluta e não é negociável", como disse o primeiro-ministro dinamarquês. Tal como devem ser absolutamente condenáveis as reacções violentas do mundo islâmico. Não podemos ainda ignorar que alguns imãs aproveitaram as caricaturas para internacionalizar o conflito e criar ambiente de resposta ao "ódio" ocidental. O Irão e a Síria agradecem o pretexto. Mas estas verdades exigem também que se tenha a lucidez de criticar com veemência todos e quaisquer actos humilhantes ou xenófobos. Não podem proibir-se para não nos igualarmos ao obscurantismo despótico, mas devem merecer crítica frontal. O combate da liberdade exige inteligência. A humilhação em nome da liberdade é uma caricatura trágica da nossa civilização".