estradas perdidas

Atrás de casa, encoberta por tufos de erva daninha, silvas e bidões abandonados, o comboio de janelas iluminadas vinha das Quintãs e silvou depois do túnel em curva, em direcção a Aveiro. Ali ao lado há uma estrada, a minha primeira estrada. Mulheres e homens cruzam-na impelindo teimosamente os pedais das bicicletas. Junto à vitrine de um pronto-a-vestir lê-se "Modas Katita". De uma taberna, saem dois homens que se dirigem para duas Famel-Zundapp. Estrada perdida.

2006-03-05

PARINTINS, AMAZONAS, É GARANTIDO!

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Numa ilha perdida no seio da Amazónia, a 420 quilómetros de Manaus. Todos os anos, em Junho, milhares de pessoas invadem-na por barco e avião para assistir à maior festa cultural do norte do Brasil, o Boi-Bumbá de Parintins. O mega-festival de cor, movimento, luz e pirotecnia envolve a multidão durante três dias até se transformar numa catarse. No “Bumbódromo”, o “povão” descarrega toda a sua energia. O som é ensurdecedor, o êxtase colectivo.


“Aqui eu esqueço tudo, esqueço que sou policial, que tenho filho e mulher, aqui não sou policial, não sou porra nenhuma”. É aos gritos, muitos perto dos meus ouvidos, que Isaac Martins da Silva se tenta explicar. Tem 35 anos e é polícia em Manaus mas em Parintins não passa de mais um entre milhares de foliões que acorreram ali, à pequena ilha de Tupinambarana, ao pequeno porto do Amazonas, a 420 quilómetros de Manaus, no último fim de semana de Junho, para assistir ao maior festival folclórico do norte do Brasil.
Estandarte do Boi Caprichoso na mão, t-shirt de alças, suando por todos os poros, Isaac era um homem feliz. “Aqui eu quero é contagiar no ritmo”-
A ilha de Tupinmbarana é um território de 7.069 quilómetros quadrados, húmido, verde, perdido no meio da Amazónia, habitado por caboclos, búfalos e cavalos mas que no final de Junho se transforma em lugar festivo que muitos comparam ao carnaval do Rio de Janeiro. Durante três dias, divididos no apoio ao Boi Caprichoso, azul e ao Boi Garantido, vermelho, 35 mil pessoas assistem e participam nas bancadas do estádio, o Bumbódromo e construído em formato de cabeça de boi, a um mega espectáculo que envolve dez mil figurantes, gigantescas figuras alegóricas e envolve toda a gente num ambiente de catarse.
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O Boi Bumbá de Parintins, inspirado no Bumba Meu Boi de São Luís do Maranhão que os migrantes nordestinos levaram para o Amazonas, acabou por se transformar num intenso ritual amazónico, com figuras próprias, como o Pai Francisco, a Mãe Catirina, Tucháuas, Cunhã Poranga, Pajé, usando lendas, rituais e ritmos indígenas.
Conta a lenda do Boi Bumba que a Mãe Catirina, grávida, desejava comer a língua do boi. O Pai Francisco, para a satisfazer, matou o melhor animal do patrão e fuguiu para a floresta. O dono da fazenda, revoltado, resolveu fazer justiça e mandou vaqueiros e índios em busca do malfeitor. Ao ser preso, o Pai Francisco pediu socorro ao Padre e ao Pajé (curandeiro). Eles então realizaram um grande ritual para ressuscitar o boi. Essa lenda é encenada em pleno Bumbódromo pelas duas escolas, Garantido e Caprichoso.
O Festival propriamente dito dura três noites, três sessões de seis horas cada uma, nas quais, a escola vermelha, a do Boi Garantido, tenta ser melhor em tudo, que a do Boi Caprichoso, a azul. Para tal, ambas as escolas, que trabalharam três meses nos “quartéis-generais” respectivos, levam a coreografia e a construção de gigantescas e espectaculares figuras alegóricas a um nível de perfeccionismo desmedido. No Bumbódromo, as apresentações são feitas sob o som de músicas electrizantes, muito alicerçadas no som dos tambores, às quais se sobrepõe a voz dos animadores, que não se cansam de puxar pela multidão, até esta atingir o êxtase, agindo como uma entidade só.
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Enquanto dura a apresentação de um boi, só a “galera” desse boi se pode manifestar. A outra tem de ficar em silêncio. Metade do estádio está em delírio e convulsão, o outro às escuras e em total silêncio. Se os apoiantes contrários se manifestarem, o seu boi é desclassificado.
Metade do Bumbódromo, a do lado esquerdo, é vermelha e é onde ficam os apoiantes do Boi Garantido. A outra metade é azul e pertence à “galera” do Boi Caprichoso. Cada “galera” tem de ser mais vibrante, mais entusiasta, mais colorida do que a outra, porque no apuramento final do boi vencedor, a prestação da “galera” também conta. Os apoiantes, todos vestidos com a cor do boi preferido, vão para o Bumbódromo por volta das três da tarde e começam logo a ensaiar os movimentos, as “toadas”, nunca parando de saltar e cantar até às três da madrugada do dia seguinte, quando termina o espectáculo. Pelas 18h00, já um animador puxa pela “galera”, pede garra, “vontade de vencer”.
“Vamos aí, galera do Caprichoso!” Dentro do Bumbódromo, ainda o “show” dos dois bois rivais não começou e já as duas “galeras” rivais dão espectáculo, agigantando bandeiras, tocando batuques até à exaustão, indiferentes ao insuportável calor tropical que põe toda a gente a suar em bica, inclusivamente os empregados que carregam malas térmicas com água, cerveja e refrigerante e são os primeiros a queixar-se do calor. “Rapaz, mesmo para a gente, esse calor, hoje, é demais”, lamentava Roberto, caboclo de Roraima, que veio para trabalhar como garçon no Bumbódromo. “A gente, os garçons, é tudo pessoal de fora. Tem pessoal de Manaus, Itaituba, Santarém, Boa Vista…”
A maioria dos apoiantes dos dois bois também vem de fora. Há gente que vem do Rio, de São Paulo, de todo o lado. Adilson Carrasco, 35 anos, todo de azul, penas azuis de índio na cabeça, veio de Cuiabá, Estado do Mato Grosso, de moto, através da BR-163, a estrada que rasga os confins da Amazónia e só é transitável na época seca. “Isso aí é uma coisa linda, valeu a pena viajar tudo isso para ver esse espectáculo maravilhoso”. Daí a pouco, Adilson já agita os braços, para o lado esquerdo, para o lado direito, cantando os temas do Boi “Caprichoso” com a galera azul: “Ohohoh, ô, ô, ô, ô,ô!”
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Quando se anuncia o Boi Garantido soa um troar incrível e rebenta um mar de foguetes junto ao Bumbódromo. Enquanto a galera azul fica em silêncio, a do Garantido entra em convulsão, num mar vermelho, de bandeiras, braços para cima, para baixo, para os lados. Na arena, entram centenas de figurantes vestidos de vermelho e branco. Daí a pouco, entram duas filas de índios, no meio de uma apoteose que não pára.
É altura de dezenas de elementos em nervosismo empurrarem para dentro da arena enorme caravelas, construídas em armação de ferro e revestidas a esferovite. A música nunca pára, nem a multidão, que balançará assim, ao som das toadas do boi Garantido, durante horas. Na arena, descobridores e índios enfrentam-se, os descobridores em cima de gigantescas paliçadas. No final, a maior caravela de todas dizima os figurantes índios ao som do troar dos canhões.
As coreografias sucedem-se. Ao som de uma música triunfal, entra uma gigantesca figura de braços abertos, um coração como ceptro. É uma enorme figura giratória, rodeada de seres em cavalinhos, segurando estandartes. O efeito é de pasmar e o êxtase da galera chega ao som de “Vermelho”, um dos hinos do Boi Garantido popularizado fora de Parintins por Fafá de Belém.
Sempre que o show parece chegar ao fim, entra uma nova alegoria, de seis, sete metros de altura, sob o efeito das luzes, o ribombar de foguetes, o delírio do público vermelho, que agita um mar de chapéus brancos. Entra um monstro com asas, uma figura articulada que esperaríamos ver num show dos Rolling Stones mas nunca aqui, nos confins da Amazónia.
Mal a apresentação do Boi Garantido termina, três horas depois de ter começado, a galera do Caprichoso abandona o silêncio a que se tinha remetido e explode. Chegou a sua vez: “Oh, oh, ôôôôôh!Eieieiei!” A multidão azul, só por si é um espectáculo, agitando os braços, segurando cartões azuis que se agitam para trás e para a frente, dando a impressão de que se trata de um gigantesco mar. O efeito só é possível porque toda a gente dança, salta, para a esquerda e para a direita.
Lá fora, junto ao Bumbódromo, os elementos de cada boi aprontam até à última hora as grandes alegorias, numa confusão de guindastes, tintas, colas, maçaricos para soldar as estruturas em ferro. Está tanta gente ou mais do que lá dentro, enchendo a corda de bares e barracas que rodeiam o estádio, assistindo pela televisão ou em ecrã gigante a todos os pormenores do festival ou simplesmente dançando e bebendo, num frenesim de carnaval, que leva as autoridades do Amazonas a realizar uma campanha a favor do uso da “camisinha”.
Parintins, o pequeno porto adormecido a meio caminho entre Manaus e Santarém, uma cidadezinha plana, de casas coloridas de madeira, onde toda a gente parece andar de moto e bicicleta, entre uma paisagem verde, de bois, búfalos, rodeada de água por todo o lado, transforma-se completamente durante os dias do festival.
Cada casa de família passa a ser um bar, oferecendo churrasco, carne de sol, farofa, feijão, macacheira. Outros alugam todo o tipo de quartos a preços exorbitantes. A cidade, essa, divide-se em azul e vermelho. Há zonas de Parintins onde de um lado da rua todos torcem pelo Caprichoso e do outro, é tudo Garantido. Conta-se que à nascença, antes mesmo de se saber se é menino ou menina, se pergunta: “É Caprichoso ou Garantido”? 20051506-bumbodromo1[1]
Foto www.parintins.com

Uma verdadeira ponte aérea Manaus-Parintins é montada todos os anos, com voos charter a toda a hora. A maioria dos turistas prefere chegar a Parintins nos barcos de madeira de dois ou três andares, dormindo nas redes que enxameiam os decks. De Manaus a Parintins? Oito horas, descendo o Amazonas. De Parintins a Manaus? Umas 30 horas, subindo o rio.
“Rapaz, foi ruim demais. O barco parou três vezes por causa dos troncos de madeira no rio, o ar condicionado estava avariado, todo o mundo em cima de todo o mundo. Da próxima vez, venho de avião”, queixou-se um folião.
Pelo ar é mais rápido e divertido. Fiz Parintins-Manaus num táxi aéreo onde a principal distracção dos 15 passageiros era esmagar os mosquitos contra o texto enquanto esqueciam o intenso cheiro a suor.
A transformação da sonolenta Parintins é tão grande durante o festival que o fim de festa não podia ser mais brutal, repentino e triste. Os milhares de visitantes partem quase todos de barco, logo na madrugada do último dia. Os voos não páram desde as cinco da manhã. No dia seguinte, Parintins acorda com as ruas vazias, cobertas de montes de lixo, os elementos de cada boi desmantelando as figuras alegóricas. “É, isso agora fica triste, todo o mundo vai embora”, lamentava uma cabocla.
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Foto Flavio Bacellar

Por volta das três da tarde do dia seguinte, os habitantes ficam concentrados junto aos rádios, ouvindo atentamente a votação dos jurados. Na mercearia Helen, da Dona Raí, “todo o mundo torce” pelo Garantido. Até ao último minuto, qualquer um dos bois pode ganhar. Até que a decisão final chega pela telefonia: “Caprichoso é campeão!” Pelas ruas de terra batida, começam a afluir rapazes e raparigas com bandeiras e t-shirts azuis, a gritar: “Caprichoso ganhou! Caprichoso ganhou!” A festa recomeça para terminar na manhã seguinte.
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Fim de festa na Mercearia Helen, o meu porto de abrigo em Parintins. Eu e a Dona Raí, que me alugou um quarto no primeiro andar, uns cinco minutos do Bumbódromo mas a quinhentos anos-luz do Boi-Bumbá das vedetas que chegam de jatinho de São Paulo
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Foto da despedida em Parintins. Dona Raí e as filhas