estradas perdidas

Atrás de casa, encoberta por tufos de erva daninha, silvas e bidões abandonados, o comboio de janelas iluminadas vinha das Quintãs e silvou depois do túnel em curva, em direcção a Aveiro. Ali ao lado há uma estrada, a minha primeira estrada. Mulheres e homens cruzam-na impelindo teimosamente os pedais das bicicletas. Junto à vitrine de um pronto-a-vestir lê-se "Modas Katita". De uma taberna, saem dois homens que se dirigem para duas Famel-Zundapp. Estrada perdida.

2006-12-11

EM BUSCA DA VERDADE EM LAGOS, MAIS NADA

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Em Março de 2005, um jovem apareceu enforcado na cela da PSP de Lagos. Na altura, tudo o que surgiu de imediato na imprensa, foi um take lacónico de uma agência noticiosa que afirmava que o suicida tinha causado desacatos no exterior de um bar antes de cometer suicídio na esquadra.
Em serviço na redacção nesse fim de semana, achei tudo muito lacónico e breve, pedi ao meu editor de então para me deixar ir à cidade e meti-me numa camioneta para o Algarve.
Tudo o que me movia era o apuramento da verdade. Não foi fácil por se tratar de um meio pequeno e de mais de uma pessoa se queixarem de medo de represálias e de ameaças.
Regressado a Lisboa, à redacção, decidi escrever o texto "Morte na Esquadra". Um agente da PSP decidiu processar-me e ao jornal, por "difamação". Expliquei, quando convocado pelas autoridades, que em 20 anos de profissão nunca fora processado e que na reportagem de Lagos só me movera o apuramento da verdade.
Hoje, recebi a notificação de que o Ministério Público de Lagos decidiu arquivar tudo. Não se comprovou e bem qualquer intenção minha persecutória ou difamatória em relação a nenhum agente em particular. Não era essa a minha intenção.
Fico satisfeito de saber que a Inspecção-Geral da Administração Interna comprovou a utilização do spray de gás pimenta. Penso que o meu texto conseguiu trazer alguma luz ao que se passou em Lagos, independentemente das naturais falhas de quem não vive na cidade nem conhece a fundo a região.

lagos_strand[1]

"MORTE NA ESQUADRA" (publicado em Março de 2005)


Na noite de sábado, dia 5 de Março, José Reis, 30 anos, instrutor de windsurf, saíu de casa, no Bairro 1º de Maio, na Meia Praia, em Lagos, para o aniversário de um amigo de longa data no Restaurante “O Caseiro”, na localidade vizinha de Araão.
“Ele saíu todo bem disposto para a festa de anos do amigo”, conta agora a mãe, entre o destroço da perda do filho e a necessidade de não falar à comunicação social, imposta desde a primeira hora pela filha, Paula Reis, advogada em Lisboa.
A casa onde José Reis vivia com os pais é um moradia baixa, pequena, branca, uma chaminé algarvia competindo com uma pequena parabólica. De lá terá saído para o “Caseiro”, um restaurante discreto, imerso no campo, que ninguém diz que alberga uma grande sala de refeição. Ao todo, nessa noite, eram umas 27 pessoas.
“O Zé?”, pergunta o empregado que os serviu. “O Zé esteve aí cinco estrelas, estava todo bem disposto. Estavam todos, era uma festa de anos. Ele nem bebeu grande coisa”.
Como é que era o José Reis? “O Zé? Era cinco estrelas, já lhe disse. Ele costumava vir aqui várias vezes com clientes lá da empresa de windsurf onde trabalhava. Alguém acredita que ele se enforcou?”
No jantar, Reis falou animadamente, entre outras coisas, sobre surf. “O meu marido faz pesca submarina e eles passaram o jantar todo a falar. Eu, que tenho sempre alguma reserva em relação a uma pessoa que já teve problemas com drogas no passado, gostei dele”, conta uma das participantes na festa.No fim do jantar, P., o aniversariante não podia conduzir porque já tinha bebido o seu bocado. Foi José Reis que conduziu a viatura dele até Lagos, onde o grupo iniciou um périplo por vários bares.
“Estivemos em dois ou três bares e entretanto, o grupo foi-se dividindo. Estavamos no bar “Taberna Velha” e o Zé disse que queria ir-se deitar porque queria ir fazer surf para a costa norte”, conta um elemento do grupo.
Na rua, antes de se dirigirem ao bar “Grand Café”, José ainda dirigiu um piropo a umas raparigas que íam a passar na rua: “Vocês é que não me estão a ver com os músculos à mostra, a fazer windsurf...”
Nessa noite, o bar Grand Café, no centro de Lagos, estava cheio. “Tinha muita gente. Tinha tanta gente que houve pessoas que não se aperceberam bem do que se passou porque o que aconteceu foi junto à entrada do primeiro andar, junto às escadas”, conta um barmen de Lagos.
Ninguém sabe dizer a hora exacta em que, na entrada do primeiro andar de chão de madeira do “Grand Café”, se iniciou a troca de palavras e agressões entre José Reis e o sub-chefe Domingos das Brigadas Anti-Crime, que ali se encontrava à paisana, como sempre.
“Eu não vi como é que tudo começou”, conta V., proprietário de outro bar na cidade, “só me apercebi da luta, dos vidros partidos no chão, dos polícias a chegarem e a levarem o rapaz. E cheirava a gás, cheirava bastante a gás”.
O facto de ter havido pessoas que não se aperceberam de desacatos tem a ver com o tamanho do bar e o facto de se encontrar apinhado. Sobem-se umas escadas de pedra por entre paredes em túnel que lembram um pouco ambientes medievais e acede-se a duas salas amplas em madeira, decoradas com arcos e colunas, grandes espelhos com grossas molduras e a figura de um anjo a pairar sobre o balcão “retro” de uma das salas. O desacato aconteceu junto à entrada, entre as escadas e a porta que dá acesso ao balcão.
“A maior parte das pessoas não deram por nada”, conta José Francisco, o gerente, “Eram umas 3h30, eu estava aqui de trás do balcão a trabalhar. Só me apercebi da confusão quando chegaram os polícias para o levar. Ele gritava “doem-me os olhos, doem-me os olhos, não vejo nada”, era só o que ele dizia. De resto, foi uma confusão normal e muita gente nem se apercebeu”.
Uma testemunha que se encontrava ao balcão diz ter visto José Reis a desentender-se com o sub-chefe Domingos, das Brigadas Anti-Crime (BAC) da PSP de Lagos. “O sub-chefe Domingos estava à paisana. O Zé disse-lhe qualquer coisa, pegaram-se os dois, o sub-chefe pega num spray e manda com gás ali para dentro. Eu fiquei com o nariz e com a garganta a arder e tive de descer as escadas e vir cá para fora”.
O facto de ter descido as escadas de pedra e ter vindo para a rua, permitiu a esta testemunha ver tudo. “O segurança do bar foi lá para separar os dois e também levou com o spray. O sub-chefe Domingos pediu reforços. Às tantas, estavam cinco ou seis polícias a caír em cima do rapaz, a bater-lhe”.
Foi então que um dos polícias que chegou perguntou ao sub-chefe Domingos porque usou o spray dentro do “Grand Café”: “Eu vi o outro a perguntar a ele: Porque é que usaste o spray aí dentro? E vi o Domingos a pegar no spray e metê-lo num guardanapo ou num pano. Foi mesmo à minha frente”.
José Francisco, o gerente, afirma que não viu spray nenhum: “Spray? Se mandaram ou não mandaram, não sei. Não cheirava a spray”. E é normal um polícia à paisana envolver-se no “Grand Café” à pancada? “Ele vem sempre aqui à paisana. Se estava em serviço ou não, não sei...”
Mesmo para quem acompanhava José Reis e pertencia ao grupo inicial que viera de Araão, as razões porque Domingos e o instrutor de windsurf se desentenderam permanecem confusas. “Há quem diga que foi o Domingos que disse: “estás a olhar para mim?” e há quem diga que o Zé o mandou para o caralho. Não sei”, diz um dos elementos desse grupo.
À porta do “Grand Café” gerou-se uma grande confusão. “Eram sete ou oito polícias. Prenderam o Zé no chão e puseram-lhe os joelhos em cima da cara, em cima da cabeça. O Zé queixava-se muito dos olhos e houve um dos amigos que até lhe foi levar água para limpar-lhe os olhos”, conta o mesmo elemento.
José Reis foi para a esquadra da PSP cerca das 4h00 da manhã do passado domingo. Dois amigos terão ido com ele e terão estado com ele na esquadra. O que se passou no interior está no segredo dos deuses. Pelo menos um dos amigos de José Reis, que esteve na esquadra, já recebeu ameaças para não falar à comunicação social.
“Ele diz que já lhe telefonaram a ameaçar e que só fala à Polícia Judiciária e ao IGAI (Inspecção Geral da Administração Interna)”, explica um amigo. Cerca das 4h00 da manhã, José Reis telefona da esquadra para a irmã, Paula Reis, em Lisboa, a pedir um advogado e ajuda. José, entretanto, é detido numa cela sem cinto e cordões dos sapatos, segundo informações da PSP.
O último turno de vigia às celas terá sido às 5h00. A PSP afirma, num comunicado enviado à comunicação social, que José foi encontrado em perigo de vida cerca das 5h20. Teria, lê-se mais tarde na imprensa, “enrolado o pescoço nas calças de ganga”. O comunicado da PSP afirma ainda que foram feitas todas as tentativas de reanimação possíveis no local, quer por agentes, quer pelo elementos do Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM). Nesse mesmo documento, emitido domingo, dia 6, a PSP escusava-se a explicar onde e porquê José tinha sido detido uma vez que “a família tinha pedido descrição”.
A Polícia Judiciária e a Inspecção Geral da Administração Interna (IGAI) passavam a investigar o caso. Segunda-feira, em tempo recorde, é noticiado via Agência Lusa que a autópsia realizada no Hospital do Barlavento Algarvio confirmou suicídio por enforcamento.
Agora, na casinha baixa e branca do Bairro 1º de Maio, na Meia Praia, em Lagos, a mãe, devastada, só sabe dizer, em lágrimas, que quer saber a verdade: “Eu quero saber porque levaram o meu filho para a esquadra. Eu quero saber. Ele saíu daqui tão bem disposto, ele nem queria ir para o Grand Café”.
Ao lado, olhar cabisbaixo, testemunha da angústia da esposa e confrontado com a sua própria inquietude, José dos Reis, pai de José Reis, encolhe os ombros: “Eu só quero o apuramento da verdade. Hoje (quinta-feira, dia 10) ainda não vi a autópsia e a Polícia Judiciária ainda não veio cá. Os jornais noticiaram segunda-feira a autópsia, nós ainda não a vimos...”Na esquadra da PSP de Lagos, o jovem comandante surge no hall de entrada, entre os olhares circunspectos e sérios dos agentes: “Não lhe posso dizer nada. O caso está sobre investigação e, por respeito para com a família...” Explico que ainda não disse o que estou ali a fazer. “Mas eu é que já sei o que quer, é o assunto do dia...”

A VIDA ATRIBULADA DE JOSÉ REIS

José Reis cresceu ali, naquele dédalo pequeno e deserdado de meia dúzia de casas brancas e chaminés algarvias, roupa a secar entre carrinhas abandonadas, roulotes, sofás e cadeiras. No Bairro 1º de Maio, na Meia Praia, em Lagos, agora a regra é o silêncio ou as meias palavras.
“A família não quer falar e enquanto a família não falar, a gente vai respeitar...”Aos poucos, no entanto, amigos e pessoas mais chegadas, vão falando. “Sempre foi muito activo, andámos na escola secundária juntos, jogavamos à bola juntos, jogávamos ténis de mesa, andavámos de bicicleta, de BMX. Ele nunca foi de estar parado”, conta A., um amigo de infância.
Por volta dos 20 anos, José experimenta a heroína e navega na onda durante os próximos anos. “Sim, andou naquilo uns quatro ou cinco anos. Foi nessa altura que ele fez mais asneiras”, conta A. “ E foi nessa altura que ele lidou com a polícia e com o sub-chefe Domingos. Se houve ou não coisas entre eles, não sei”.
Não consegui, em tempo útil, ter acesso ao eventual cadastro de José Reis. Em Lagos, há quem diga que tem o registo limpo, quem diga que já esteve preso e o jornal “24 Horas”, chegou a noticiar na segunda-feira passada que José esteve preso 12 anos. “Diziam que ele esteve 12 anos preso. Quer dizer, tinha passado metade da vida preso. Como, se ele tinha o cadastro limpo?”, pergunta o pai, José dos Reis.
Pedro Filipe, do “Windsurf Point”, garante, lacónico, que “nos últimos anos, José Reis nunca passou uma noite na PSP de Lagos”. A., o amigo de infância, que afirma ter-se iniciado na heroína ao mesmo tempo, diz que sim, que nos velhos tempos José “chegou a ir a julgamento duas ou três vezes e a ter pena suspensa”.
Foi durante o auge dos anos negros da heroína que, para o tirar de Lagos, a família o envia para Lisboa, para o pé da irmã, Paula Reis, de onde segue para um Centro de Recuperação para Toxicodependentes em Arruda dos Vinhos. Nessa altura, trabalhou como mecânico na FIAT. “Ele sempre foi de desenracar coisas, uma prancha, uma motorizada”, justifica um amigo.Nesses tempos em que esteve fora, José Reis ía a Lagos muitos fins de semana. “Nessa altura, estava a cortar com a heroína e estava limpo. Nem alcool bebia”, conta A.
Quando regressou para a casa dos pais, a sua casa de sempre, no pequeno bairro 1º de Maio, na Meia Praia, José começou a trabalhar na escola de windsurf “Windsurf Point”, mesmo ao lado de casa.
“Veio mais calmo. Já cá estava há quatro anos. Dava instrução aos miúdos, os miúdos gostavam dele, era brincalhão. Também arranjava pranchas. Podia ir beber os seus copos à noite a Lagos que no dia seguinte estava aqui às 9h00”, contam na “Windsurf Point”.
Na noite de Lagos e em particular no bar “Grand Café”, onde José Reis teve o desacato final da sua vida, ninguém parece ter razões de queixa. “Ele aqui nunca arranjou problemas”, afirma, taxativo, o gerente, José Francisco.
Nos últimos tempos, dizem, José estava entusiasmado com a abertura da loja da “Windsurf Point”, numa urbanização nova situada entre a marina de Lagos e a Meia Praia e preparava-se para assinar contrato na escola. “Uma pessoa que anda entusiasmada com isto, vai-se suicidar?”, perguntam.


LAGOS, A CIDADE DOS RUMORES

Mulheres sentam-se em mesas de café a falar sussurrado sobre o assunto do momento. “Dizem, dizem que ele se suicidou...”, diz uma. “Tu, lá da tua casa, viste ou não viste?”, pergunta outra. Desde há uma semanas que em Lagos ninguém fala noutra coisa que não seja o suicídio de José Reis na esquadra da cidade. Não se trata de um falar livre, aberto e democrático mas de uma coisa assim entre a ladainha e o sussurro. As informações e contra-informações sucedem-se. “Agora, já dizem que o polícia, o Domingos, estava em casa a dormir quando o Zé se suicidou, você acredita. Ah, e dizem que o spray apareceu no bolso do Zé...”
À superfície, a cidade parece viver o dia a dia normal de qualquer pequena cidade. Nas entrelinhas, nas conversas de café e da Praça Gil Eanes, o que aconteceu está presente em muitas conversas. Os interlocutores calam-se e baixam os olhos quando o forasteiro os confronta com o sucedido. “Ah, eu cá não vi nada. Porquê, disseram-lhe que eu tinha estado lá? Não, não vi nada”, responde educadamente um jovem barmen, que alguém jurava ser testemunha do que se passou no “Grand Café”, na madrugada do passado domingo.
Para alguém de fora, as pessoas são sempre muito as mesmas. Na Praça Gil Eanes, perto dos “junkies” que se passeiam pelo espaço compreendido entre os CTT de Lagos e as traseiras da Câmara Municipal, os polícias são os mesmos que nos observavam circunspectos quando nos dirigimos à esquadra da PSP local.O jovem que se cruza conosco num bar é daí a pouco o barmen no animado “Mullens” e o outro, de cabelo com gel, que bebe imperiais no “Mullens”, é o que nos serve o café de manhã, junto à Praça Gil Eanes.
À noite, em plena Praça Gil Eanes ou mesmo na Rua 25 de Abril, a Lagos de Março é um deserto, um vazio quebrado pelas gargalhadas de um bando de turistas, pelo som do mar lá na Meia Praia ou pelo neon de bares como o “Bom Vivant”, os ecrãs gigantes ligados na Sky TV. Num dos bares do centro, um barmen é taxativo: “Lagos é muito pequeno, é um meio muito pequeno e você não vai conseguir que ninguém lhe diga nada”.
Procurar dados sobre o caso José Reis é como riscar a ponta de um iceberg. Em desespero de causa, rumamos ao bairro de 17 barracas junto ao Estádio Municipal de Lagos. “Devia era ter sido aqui. Aqui somos todos unidos e não temos medo da polícia. É quase tudo mulheres porque os homens estão presos. Quando alguém vai parar à esquadra, liga para cá e vamos lá todos”, explica J., uma amiga de infância de José.“Já aqui tivemos uma placa a dizer “proibida a entrada à polícia”. Uma vez vieram cá buscar uma pessoa, até deram um tiro num carro. Fomos todos para a esquadra. Se o caso do Zé tivesse acontecido aqui, ele ligava, íamos todos lá”, afirma J., peremptória.