estradas perdidas

Atrás de casa, encoberta por tufos de erva daninha, silvas e bidões abandonados, o comboio de janelas iluminadas vinha das Quintãs e silvou depois do túnel em curva, em direcção a Aveiro. Ali ao lado há uma estrada, a minha primeira estrada. Mulheres e homens cruzam-na impelindo teimosamente os pedais das bicicletas. Junto à vitrine de um pronto-a-vestir lê-se "Modas Katita". De uma taberna, saem dois homens que se dirigem para duas Famel-Zundapp. Estrada perdida.

2004-11-01

Nininha nunca viu o mar

“Cê não tem medo? Oxente, que faz um português num fim do mundo desses?”, pergunta a “nêguinha” Nininha, aliás, Oresmilda, secretária da Prefeitura de Orocó, Pernambuco, em pleno “polígono da maconha”. Orocó é uma cidade de uma rua só no semiárido nordestino. Ela e a maioria dos seus habitantes nunca viu o mar “Hum, hum”, diz Nininha. Abana a cabeça e ri, os dentes muito brancos. O mar de Nininha é o Rio São Francisco, que percorre a região.
Orocó, em plena BR-428, é terra de bandido. A BR desce por uma região desolada, semi-deserta do sertão do sul do Pernambuco, cactos espetados no ar como braços, a terra vermelha e seca, as árvores retorcidas pedindo a água que não vem. Viajar ali, de carro particular, camião ou de autocarro de passageiros, pode ser um sobressalto. Sempre que o “ónibus” pára ou para um polícia militar inspeccionar a viatura ou por causa das frequentes “lombadas”, as cabeças esticam-se à espera de tudo. “Isso aqui é perigoso demais, eles assaltam sua viatura, pegam tudo e lhe largam no mato. Se você fala muito, lhe matam. É muito perigoso”. Ali, a mais de 600 quilometros a sul do Recife, percebe-se que as coisas vão piorando e deteriorando a partir do momento em que a camioneta deixa a região relativamente pacata do alto sertão e desce em direcção ao polígono da “maconha” (marijuana), a região junto ao Rio São Francisco, domínio dos “maconheiros” (produtores e distribuidores de “maconha”).
Avisos não faltam: “Não confie em ninguém” ou “bote seu dinheiro na bunda”. A cidade de Floresta é alvo de especiais cuidados. “Ô gente, um dia eu fui lá carregar e me receberam de arma na mão. É muito perigoso”, explica o camionista Paulo. Tudo porque além de terra de maconheiro, Floresta vive há muito uma guerra fratricida entre duas famílias rivais. “É até morrer o último”.
As pequenas cidades ali no sul do Pernambuco são povoados minúsculos no semideserto, onde cada forasteiro é observado à distância até derreter a desconfiança e ser recebido com uma hospitalidade quase embaraçante. “O que comem lá em Portugal?”, “Portugal é bonito, não é?”, “me leva para Portugal”. Logo, logo, começam as imitações do sotaque português. “Ele não diz Brásil, diz Bresil”...
Para conseguir um transporte para onde quer que seja, é preciso ir à prefeitura local e pedir por favor ao prefeito que disponibilize uma viatura. “Hoje não vai dar não, o melhor é você sentar e ficar aqui conversando com a gente. Diz aí: as mulheres portuguesas, como são?” A prefeitura de Orocó parece um caixote. Somos levados a conhecer uma a uma, as salas, as secretárias, o posto de saúde. De repente, alguém coloca uns colchões na sala da secretária do prefeito. “Ô gente, vamos tirar isso daí, está aqui um jornalista de Por-tu-gal”. Em frente à prefeitura, junto aos bancos onde à noitinha se juntam os namorados, fica a minúscula dependência do Banco do Brasil fechada depois de ter sido assaltada duas vezes em 15 dias. Para levantar dinheiro, é preciso conseguir uma boleia até 32 quilometros a sul, para a cidade de Santa Maria, onde o Banco fica em frente a um quartel de polícias militares de mão no coldre. No Banco, basta trazer uma moeda no bolso para a porta não abrir e um polícia aparecer, de mão no revolver.
À noite, os camiões zumbem na pequena tira de asfalto que rasga o sertão, esperando não ter problemas. “Ontem de madrugada, tentaram assaltar um camião na pista. Aí, o cara não parou, eles atiraram no camião”. O dono do hotel local leva-nos na sua moto até ao clube local e fica espantado quando explicamos que queremos lá ficar e voltar a pé. “Não, cê volta comigo, ninguém lhe conhece aqui”.
Insegurança à parte, todo o Pernambuco é uma festa, sobretudo em Junho, que se comemora o São João durante praticamente um mês de forró, muita cerveja, cachaça e alegria. Bandas de forró enchem a programação das festas de Caruarú, a capital do forró.
No autocarro escolar de Orocó, que nos deu uma “carona” para Petrolina, na fronteira com o Estado da Bahia, ninguém pára quieto. “Mais som! Bota forró!” Só ao fim de duas horas de viagem, as pernambucanas parecem sossegar ouvindo duplas sertanejas: Leandro e Leonardo, Xitãozinho e Xororo, Zeze Di Camargo e Luciano. É sol de pouca dura.
“Esse homem é o homem que toda a mulher tentou chamar: Xananana, úúúúúú...”

P.S. Do outro lado do Rio São Francisco, em frente a Petrolina, fica Juazeiro, terra natal da Ivete Sangalo e que já é Estado da Bahia. A Nininha? Ficou furiosa por eu ter escrito que ela nunca tinha visto o mar. A Nininha queria ver o mar. Quem sabe já não viu o mar?
Uma vez, no GNT, um jornalista perguntou a uma velhinha sertaneja, daquelas figuras mirradas, secas e queimadas pelo calor impiedoso do sertão: "O que a senhora acha que é maior, o mar ou o sertão? E ela respondeu prontamente: "o sertão".

1 Comments:

  • At 5:17 da tarde, Blogger Unknown said…

    VC realmemnte encontou a nininha, ela não ainda conhece o mar. sou da pequena cidade de oroco por imprestimo pois vim de itacuruba cidade mnor e mais violenta que oroco.Agora me diz que faço eu.

     

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