estradas perdidas

Atrás de casa, encoberta por tufos de erva daninha, silvas e bidões abandonados, o comboio de janelas iluminadas vinha das Quintãs e silvou depois do túnel em curva, em direcção a Aveiro. Ali ao lado há uma estrada, a minha primeira estrada. Mulheres e homens cruzam-na impelindo teimosamente os pedais das bicicletas. Junto à vitrine de um pronto-a-vestir lê-se "Modas Katita". De uma taberna, saem dois homens que se dirigem para duas Famel-Zundapp. Estrada perdida.

2004-12-02

Vida de presidente

Centro de Apoio Social de São Bento da Santa Casa da Misericórdia. Jorge Sampaio senta-se ao lado de um homem que decalca figuras de animais numa tábua de madeira junto a porcos verdes e laranja feitos em papel. Cercado por câmaras fotográficas e de televisão, microfones espetados à sua frente, cabos que serpenteiam pelo chão, gente estranha, assessores de gravatas garridas e fatos escuros, o homem, problemático e apavorado, recusa-se a falar. "Tem de falar com o senhor presidente..." ainda diz a provedora, Maria José Nogueira Pinto. Em vão. "Eu também não falaria..." comenta Sampaio.
O presidente segue mais a sua comitiva para o andar de cima. O primeiro homem olha uma última vez assustado para a nuvem humana que acabou de passar. Diz qualquer coisa ao animador. Volta a baixar os olhos, concentra-se de novo nas imagens.
Primeiro andar, curso de ajudante de cabeleireiro. Uma jovem negra vistosa convida-o, na brincadeira, a pintar o cabelo. "Oh, comigo já não dá, já não tenho cabelo..." Insistem que pinte as brancas. "Isto é tudo original, não pinto nem pintarei", garante, bem disposto.
À volta de Jorge Sampaio gira um circo. "Temos nove minutos", diz alguém. "Ele chegou um bocadinho antes da hora", comenta outro. Um assessor olha para o relógio. Uma mulher interrompe a pintura de frascos de iogurte e bate palmas.
O espaço é demasiado pequeno para tanta gente. "Deixem passar o senhor presidente", diz o ajudante de segurança. "Eu estou a trabalhar", refila com ele um operador de câmara. Um homem que pinta um cabide de madeira com figuras natalícias avisa o fotógrafo do presidente que "está a pintar a mala" que traz ao tiracolo. "Mas afinal onde está o cabo?", pergunta uma jornalista de televisão.
"São precisas cada vez mais almofadas sociais", diz Sampaio pouco depois das 13h00 e em directo para as televisões. "Há pessoas profundamente excluídas, esta, a dos sem abrigo, é a exclusão limite. Neste campo, estamos sempre em défice".
Encaminham-no para a mesa de almoço. Em forma de rectângulo imcompleto, sentam-se cerca de 30 pessoas, cujos nomes e disposição dos lugares sentados consta de uma folha afixada na parede. Entre 14 doutores, um professor doutor, uma dona e uma senhora dona, sentam-se oito sem abrigo.
Albarraque, Aldeia de Santa Isabel, cerca das 15h30. Aí, a excursão de fatos escuros que acompanha o presidente para todo o lado passa a navegar num universo intergeracional de seis hectares de casinhas brancas e azuis, oficinas de formação profissional, lar de idosos, lar de crianças.
Por onde passa, o Presidente da República tem o condão de colocar tudo e todos a mexer, a trabalhar, a pintar, martelar, a soldar, a correr, a estudar. "Stôra, já podemos ir embora?", pergunta um rapaz equipado a azul e branco. "Stôra", comenta outro, "ele não me cumprimentou".
Na oficina de marcenaria, dois rapazes desatam furiosamente às marteladas. No exterior, um jovem corta a relva com uma máquina e duas raparigas aparam a grama, ajoelhadas, absortas no que estão a fazer. Na oficina de pintura auto, um jovem falou com o presidente sem tirar os auscultadores anti-ruído. "Ouve lá, não sabias tirar os auscultadores para falar com o presidente?", perguntam-lhe.
No bar, Sampaio fala, tenta falar com uma idosa de 100 anos. "Isto está quase a acabar, não acredito que ele vá dizer mais grande coisa...", diz uma repórter ao telemóvel. "Não", afirma de mãos nos bolsos alguém no grupo de visitantes, "estou exclusivamente na gestão e planeamento..."
Em frente ao bar foi organizada uma aula ao ar livre com jovens "dreads" indisciplinados. Um pesadelo logístico para as duas professoras que os têm de manter sossegados enquanto o presidente estiver no bar. "Cala-te, por amor de Deus!" A excitação naquelas mesas é generalizada. "Mas diga lá stôra, qual é a provedora, é aquela loira? Vou lá falar com ela!" Responde a professora: "Tu vais ficar aqui sentado!"
Como comentaria mais tarde o presidente, aqueles jovens vêm de famílias desestruturadas e cairão de novo na rua se não forem devidamente integrados. "Ya, por causa da visita, tivemos de limpar isto tudo em dois dias, limpámos bué... Ya, até tivemos de cortar árvores. Tens um cigarro? O presidente traz cigarros?, pergunta um.