estradas perdidas

Atrás de casa, encoberta por tufos de erva daninha, silvas e bidões abandonados, o comboio de janelas iluminadas vinha das Quintãs e silvou depois do túnel em curva, em direcção a Aveiro. Ali ao lado há uma estrada, a minha primeira estrada. Mulheres e homens cruzam-na impelindo teimosamente os pedais das bicicletas. Junto à vitrine de um pronto-a-vestir lê-se "Modas Katita". De uma taberna, saem dois homens que se dirigem para duas Famel-Zundapp. Estrada perdida.

2005-04-17

Ficções do País Obscuro

A libertação

Os comerciantes junto ao troço da metade sul da Rua Joaquim António de Aguiar, junto ao famoso túnel do Marquês, na cidade de Lisboa, capital do país obscuro mais divertido e extravagante do mundo, foram libertados sexta-feira depois de cerca de um ano de cativeiro.
“Liberdade! Liberdade! Liberdade!”, gritavam alguns, ainda aturdidos e confundidos, cambaleando para fora das lojas enquanto outros afastavam as grades e respiravam a plenos pulmões entre a poeira e o cimento da obra do túnel mais polémico do mundo.
“Hoje? Hoje é o primeiro dia do resto da nossa vida”, explicou um comerciante, que se escusou a prestar mais declarações por se encontrar muito emocionado. Uma pessoa que atravessou uma fresta já aberta no gradeamento para se dirigir a uma loja e perguntar um simples “ quanto custa” foi aplaudida freneticamente. “O que é que se passa aqui?”, perguntou.
À medida que os gradeamentos daquela zona de estaleiro eram retirados, iam-se vivendo cenas de autêntica libertação. Abraços, lágrimas, gritos de alegria entre os comerciantes da via rente ao Parque Eduardo VII e da Rua Rodrigo da Fonseca, eram presenciados com muita emoção e comoção por operários e responsáveis técnicos da obra.
“Eu não te disse, eu disse-te, eu disse-te que um dia o teu sofrimento terminaria”, dizia um operário, as mãos no rosto de um comerciante, que ainda não queria acreditar que o cerco chegara ao fim.
“Estamos livres? Estamos mesmo livres? Quer dizer que não vão voltar a colocar o gradeamento? Nunca mais?”, perguntava o lojista, ainda atordoado. “Não, camarada, não, estás livre, a partir de agora a Joaquim António de Aguiar é tua, podes voltar a fazer dela o que quiseres!”
Alguém a quem várias pessoas chamavam de “engenheiro” foi mesmo visto a conter uma lágrima enquanto fungava em trepidações emocionais, de olhos nas árvores do Parque Eduardo VII e de costas para as lojas libertadas.
Antes mesmo da remoção de parte do gradeamento, alguns comerciantes e pessoas ligadas afectiva e efectivamente aqueles estabelecimentos, pontapearam simbolicamente as grades. “Toma lá”, disse um, antes de desferir um pontapé na vedação. A grade oscilou à sua frente, fez que ía para a frente e acabou por vir para trás e abateu-se sobre o libertado, que mesmo assim não se deixou abalar: “Fascismo nunca mais!”, gritou, deitado no asfalto, ao que os outros responderam: “nunca”.
Os operários que retiraram o gradeamento foram presenteados com cravos nos bolsos dos fatos de macaco, beijos nas faces e muitos abraços. “Eh, eh, tenham calma, tenham calma, calma aí que me dão cabo das costelas”, disse um dos operários. Um guineense que pediu anonimato confidenciou ao Ficções do País Obscuro que nem no casamento em Bafatá tinha sido tão beijado. “Este pessoal sofreu muito, é um pessoal muito sofrido”.
Apesar de tudo, eram poucos os que invectivavam o presidente da câmara, Pedro Santana Lopes e o responsabilizavam pelo cativeiro. Um comerciante, conhecido ali entre amigos como o “Xanana Gusmão” da Joaquim António de Aguiar, explicou que a hora era de reconciliação e de aproximação entre as partes.
“Por muita dor e ressentimento que possamos ter nos nossos corações amargurados, temos de encarar o futuro como um futuro de paz e amizade entre todos. Estivemos cercados mais de um ano mas nunca esmorecemos. Eu sempre acreditei e penso que os meus companheiros também”.