Mataram um camionista, ontem à noite, na “linha de fogo”. Encontraram o corpo, de madrugada, duas balas na cabeça, à beira da estrada. Ninguem sabe pormenores. Alguém ouviu no rádio CB que comunica com os camiões que circulam naquela área. “Marido”, pergunta a dona de casa de Juazeiro, Estado da Baía, enquanto prepara ovos estrelados, “de onde era o caminhoneiro que assassinaram ontem? Era de Santa Catarina ou de Rio Grande do Sul? A gente só ouviu na rádio...”
O camião apareceu? “Isso, o camião ‘tava transportando cerâmica, não levaram a carga, mataram o cara só por dinheiro, encontraram o camião vazio, na estrada...”
Norberto Pacheco de Farias, 33 anos, ouve em silêncio, em frente a um prato de arroz, macarrão e ovos estrelados oferecido pelos donos da casa. Em boa hora, decidiu passar a noite ali, em Juazeiro e atravessar a “linha de fogo” à luz do dia. “´Tá louco, de noite, eu não passo nunca”.
Dia seguinte, seis da manhã de 11 de Julho de 1998. O camião cor de laranja Scania de Norberto, transportando 22 toneladas de pó de borracha carregado em Cubatão, perto de São Paulo e para descarregar a 3 mil e trezentos quilómetros a norte, em Fortaleza, faz-se de novo à estrada, desta vez o trecho Petrolina-Salgueiro, no sul de Pernambuco, conhecido pelos “caminhoneiros” como a “linha de fogo”. É o trecho mais perigoso da viagem. Os pátios dos postos de gasolina, onde os camionistas estacionam e dormem, são vigiados por homens com espingardas 12 à cintura.
“Eles botam pau para fazer parar o camião ou então, eles seguem a seu lado, apontam uma 12 a você e dizem para você parar na berma. Todo o Brasil é perigoso mas aqui é muito perigoso. De noite, só um louco, tem muito pouco caminhoneiro fazendo esse trecho de noite”.
Já passamos Petrolina, avançamos sertão dentro em direcção a Lagoa Grande, onde foi morto o camionista na noite anterior. Norberto liga o CB do camião e tenta comunicar com o camionista mais próximo. “Alô Tubarão, alô tubarão, aqui Maçarico, aqui Maçarico”. De repente, ecoa na cabine a voz de um “caminhoneiro” mineiro, que segue em “comboio” com outro colega de Itajubá, Minas Gerais: “Cara, eu tenho medo de passar aqui de dia, de noite...’tá louco, de noite você tem 95 por cento de ser assaltado”.
Norberto, no entanto, apesar de apenas viajar ali há seis meses, é um camionista avisado. “Em Janeiro, quando estava viajando para Fortaleza, assaltaram um ónibus de passageiros. Mataram o motorista com dois tiros na cabeça e deixaram todo mundo pelado”.
Os saques do Movimento Sem Terra naquela estrada, rodeada de fazendas ocupadas pelo MST dos dois lados, também obrigam os camionistas a ficarem de sobreaviso. “Na minha última viagem, havia saque em Santa Maria, aí avisaram todo o mundo pelo rádio, eu fiquei esperando em Petrolina, só saí num comboio de 70 camião”.
Em breve, seguimos em comboio, juntamente com os dois camionistas mineiros. Um deles fala interminavelmente, preenchendo a desolação da travessia com mil e umas histórias, sem dar tempo a Norberto de responder. De repente, ouve-se “bam!” Um pneu do atrelado acaba de rebentar em plena “linha de fogo”. Norberto salta lá para fora. O segundo camião mineiro para junto a nós. O outro continua a falar durante uns dez minutos. “Pô, o cara com um pneu rebentado e você falando, falando”, comentará mais tarde, já no posto de gasolina de Salgueiro, para onde seguimos devagar.
Olhos esbugalhados, o rosto marcado de viagens por todo o Brasil, o primeiro caminhoneiro mineiro convida-nos na bomba de gasolina a comer a refeição de arroz, feijão e carne seca que prepara, com uma pequena botija de gaz, na mala do camião. “Olha aí, azeite português!”, diz, exibindo uma lata lusitana com orgulho.
O camionista mineiro, agora ocupado em cozinhar sob um calor sufocante que nos obriga a comer à sombra de dois camiões, já foi assaltado ali em pleno posto. “Aqui nessa região, matam você por cinco reais. Estava parado no posto de Salgueiro, às cinco da tarde, tudo iluminado, arrumando os pneus com o borracheiro, aí chegou um cara, encostou-me o revolver e gritou “passa o rádio, passa o rádio”. Eu disse que não conseguia tirar, ele gritando “me dá o rádio, me dá o rádio”, os olhos carregados de maconha. Aí, ele agarrou o braço do borracheiro, eu peguei a mão na porta do camião, atirei com força no cara, o cara caíu, eu fugi”.
A lei brasileira impede os camionistas de andarem armados. “Dois anos de prisão se apanharem você armado”, explica Norberto. “Mas é melhor assim. Você consegue matar um bandido, os outros matam você. Se você não reagir, largam você no mato”.
Norberto saíra de Cubatão, subúrbio industrial de São Paulo, na manhã de quarta-feira, dia 8 de Julho e esperava chegar a Fortaleza no domingo, dia 12, a tempo de ver a final da “Copa” de 98. Pelo meio, ficaria um universo de camionistas guiando sob o efeito de “rebite”, estradas esburacadas ou cruzadas por animais, ameaçadas por assaltantes, postos de gasolina enxameados por prostitutas, distâncias de milhares de quilómetros de sertão puro.
Quando conhecemos Norberto, em Cubatão, montado em cima do seu Scania, tinha o tronco nú, a cara farruscada, os olhos rodeados por um círculo negro do pó de borracha que acabara de carregar. Um autocolante no vidro do camião pedia a São Cristovão que protejesse aquele motorista, uma toalha com uma bela e nua morena, de seios redondos, estendia-se a todo o comprimento da pequena cama, por trás de Norberto. “‘Tou parecendo o Conde Drácula, não ‘tou? Eu não mexi em nada, foi só de ficar lá olhando no meio daquela poeirada. A minha camisa ficou toda grudada”.
Preparava-se para regressar à estrada, até Fortaleza, 3.300 quilometros a norte, se se pode falar de regresso. Estivera dois dias em casa, depois de uma viagem de quase 40 dias no camião. Agora, esperavam-no mais um circuito São Paulo-Fortaleza, transportando pó de borracha, Fortaleza- Salvador, onde carregaria soja, daí para Minas Gerais e daí para Paranaguá, Paraná, onde carregaria acúcar de novo para Fortaleza. “Eu moro na estrada e passeio em casa”.
No Rio de Janeiro, é que Norberto não carrega mais. “O Rio é cidade de sem vergonha. Deixaram-me lá enrolando três dias, aí não queriam pagar minha diária. Eu disse que se não pagassem minha diária, botava o camião na frente da porta da fábrica. Aí o cara chamou a polícia: “Aí paulista, que é que cê quer?” Eu disse ao policial: Não bota mão em mim, que eu não sou ladrão, tenho o cadrasto limpo, eu só quero minha diária. O cara disse: “Ah, você é muito bocudo”. Aí, acabei batendo papo com o policial, mandei o cara da fábrica enfiar a diária no cú e disse: “Senão couber, enfia no da sua mulher também”.
Ao Rio, não volta mais: “Eu disse ao cara, se depender de mim, podem ‘tar aí passando fome que eu não venho aqui trazer comida para vocês, seus cabras sem vergonha”.
Dantes, Norberto chegava a ganhar 10.500 reais por mês. “É, nessa época tinha cara ficando rico. Eu ía e vinha a Fortaleza, tirava 7.500 reais. Agora, para fazer esse dinheiro, tenho de andar 40 dias buscando frete em todo o lado. ‘Tá ruim p’ra caramba, agora”. A culpa é do real. “Com o real, subiu o preço de tudo, baixou o frete”. O sonho de Norberto, agora, é amealhar o suficiente para montar um posto de gasolina perto da cidade natal, Jundiaí, São Paulo.
Ele e o sogro possuem três camiões, com os quais já conseguiram fazer algum dinheiro, no tempo em que o frete era bom. Amadeu Pires dos Santos, 55 anos, o sogro de Norberto, que faz fretes na região de São Paulo e está sempre de sobreaviso aos ladrões da região, já foi assaltado na serra, a caminho de Ribeirão Preto. “Levava remédio, a carga era boa. Os caras têm informador nas fábricas que dizem o camião que vai saír, a carga, tudo. Eles querem remédio, veneno, televisor, aparelhagem. Não adianta tapar com a lona, eles comunicam por celular e assaltam na estrada. O meu sogro foi assaltado às 5h30. Só não levaram o camião porque estragaram as mudanças”.
Desde que há dez anos trocou o sedentário emprego de mecânico numa fábrica de Judiaí pelo de camionista errante, Norberto nunca foi assaltado. “Graças a Deus. Eu nunca facilito, não dirigo à noite em estrada perigosa e no posto, eu sempre tranco o camião”.
Norberto gostava de levar consigo Leandro, o filho de nove anos que já aprendeu a fazer marcha atrás no camião e está doido para viajar com ele. “Não dá, ‘tá louco, é muito perigoso, não dá para arriscar”.
O camionista paulista não toma “rebite”, como muitos colegas de profissão, que guiam horas e horas sem parar pelo Brasil à custa de tomar a droga. “Eu não tomo. Um cara toma rebite, aí o cara fica aceso, só que na hora em que o rebite deixa de fazer efeito, o cara dorme”. Ri-se quando lhe falamos no limite de oito horas seguidas que vigora na Europa. “Ai é? Porra, aqui eu já fiz 38 horas seguidas, sem “rebite”.
São Paulo, dia 8 de Julho, quatro pistas, viadutos, prédios e mais prédios, tráfego intenso na Avenida dos Bandeirantes. “Aqui você pode ficar três horas para fazer três quilómetros, você fica doido. Olha a bagunça que é. E os carros pequenos não respeitam camião, não, vão entrando em qualquer lugar”. Tomamos a Via dos Bandeirantes, quatro pistas rumo a Campinas, depois a Via Anhanguera, um mar de camiões ultrapassando-se, entre uma paisagem de eucaliptos cobrindo os montes. “Aqui em São Paulo, assaltam 20 camião por dia. Aparecem de carro ou de moto, mandam parar você, em pleno dia e tem mais outros controlando à frente e atrás”.
Em Jundiaí, um subúrbio industrial a uma hora de São Paulo, a família despede-se de Norberto. Afinal, foram apenas dois dias em casa. “Não fica enrolando muito lá em Fortaleza, viu?”, diz a esposa, roendo as unhas. “Quando cê volta, paíê?”, pergunta ansioso Leandro. “Ele não sabe, né?” Norberto responde: “Talvez daqui a um mês”. Leandro trepa a porta do camião, espreita, está desejoso de viajar também. “Desce Leandro!” Norberto benze-se. “Chau paiê!”, grita Leandro.
“Oi negão, bota aí água no camião!”, grita Norberto na bomba de gasolina de Judiaí, a última paragem antes de se fazer à estrada, rumo a Belo Horizonte. Depois de uma via rápida ainda no Estado de São Paulo, a estrada piora em direcção a Minas Gerais, repleta de camiões, em obras, com desvios que surgem de todos os lados. “A gente nunca sabe de onde vai surgir novo desvio”. À frente, irrompe de repente um camião de Santa Catarina. “Tinha de ser um sulista mesmo! Até hoje, só encontrei dois irmãos sulistas gente fina p’ra caramba. O resto não presta. Acham que o camião deles é o melhor, acham que são mais bonitos, não falam com a gente”.
Um camião velho nunca mais ultrapassa outro que segue à frente. “‘Tá vendo porque é que eu gosto de conduzir à noite? Por causa desses palhaços que ficam aí atrapalhando a gente”. Norberto carrega no acelerador e executa uma ultrapassagem de cortar a respiração. Ultrapassa os dois camiões em cima de uma curva. “E se viesse algum daquele lado?”, pergunta, como se a culpa fosse da lentidão dos dois camiões e não da sua ultrapassagem.
Norberto pára junto a um Posto Fiscal para carimbar a papelada da carga. É um ritual que terá que repetir vezes sem conta durante a viagem. Outro ritual é pegar num martelo de madeira e martelar todos os 16 pneus do atrelado.
A noite cai inesperadamente fria em Minas Gerais. Nem o forró da cassete que Norberto coloca faz aquecer a cabine. Perto de Pouso Alegre, os cantoneiros aquecem-se junto a fogueiras. Dormimos dentro do camião, numa bomba de gasolina, sob um frio serrano que não joga com a nossa imagem do Brasil.
A 9 de Julho, Minas Gerais amanhece sob um céu lavado e frio. “Nem tranquei a porta”, percebe Norberto, às 5h00 da manhã, de escova de dentes na boca. Os viajantes trazem gorros de lã na cabeça, blusões, as mãos nos bolsos, os campos cobertos de geada. A neblina engole a rodovia Fernão Dias, enrola-se nas serras, cobre as fazendas como um manto. Ao fim de intermináveis subidas e descidas entre montes e fazendas, Belo Horizonte surge envolta num mar acastanhado de smog, que não deixa visibilizar os contornos dos edifícios. “Oh só o cheiro, parece São Paulo”, comenta Norberto. Numa placa lê-se “Bem vindo a Contagem, coração da indústria mineira”. Na realidade, apetece fugir dali, das fábricas, dos escapes. Só a montanha mal recortada lá ao fundo parece respirar em sossego.
Minas Gerais parece não acabar nunca, à medida que a paisagem se torna mais seca, a estrada mais plana, entre placas anunciando “minhocuçú”, “sarapó”, “pamonhas”, coco gelado. Em Paraopeba, um cartaz anuncia a “linguiça da Beté, a melhor de Minas”. Estamos ainda a uns 500 quilometros do Estado da Baía e já a estrada é apenas uma recta interminável, um risco cinzento e solitário em direcção ao horizonte. Para combater o tédio, Norberto liga o rádio e entretem-se a ouvir camionistas norte-americanos e argentinos no CB. “Benvindo a Corinto, portal do sertão mineiro”, saúda uma placa a toda a extensão da estrada.
O calor aperta dentro da cabine. O sertão dá lugar a montanhas e declives que suplantam qualquer das descidas da IP-5. Numa curva da serra, onde temos de descer muito devagar por causa da inclinação, aparecem duas cruzes ao lado de um camião todo esmagado. “Viu a carreta? Bicho, não pode abusar na serra, bicho”.
Atravessamos povoações minúsculas, empoeiradas, perdidas entre eucaliptais e pinhais, sem luz eléctrica, banhadas à noite por um luar magnífico. As descidas sucedem-se até que um cheiro intenso a borracha invade a cabine do camião. “Os pneus da carreta estão sem freio, cara, há um pneu que está fininho, fininho”, diz um incansável Norberto, que guia há umas 15 horas.
A serra daquela região solitária e inóspita do norte de Minas termina de repente com as luzinhas da cidade de Salinas disseminadas pelo vale. Na bomba de gasolina, há dezenas de camiões, homens entrando e saíndo do “banheiro” de toalha no ombro, enquanto outros camionistas, rostos afogueados, t-shirts baratas, calções, alguns de toalha que trouxeram do chuveiro, bebem cerveja e contam uns aos outros as peripécias da descida da serra. “Cê lembra aquela curva, a segunda...”, diz um. “É a terceira, bicho, é a terceira”, corrige alguém. “Isso, a terceira, a carreta ‘tava quase quebrando, balançando, balançando”.
Ao fim de 17 horas consecutivas de viagem, uma placa anuncia “Benvindos ao Estado da Bahia”. Como que complementando a mensagem, a estrada piora logo, contorce-se em altos e baixos inacreditáveis, em estrias, em lombadas. “Coloca essa lombada na buceta da filha do prefeito, na mulher, na mãe, puta que o pariu!”, explode Norberto, com o camião e o atrelado aos tombos. Custa a crer que aquela seja a BR-116, que liga o Rio de Janeiro a Salvador. Os camiões passam pela estreita tira de asfalto quase raspando no camião de Norberto e de máximos ligados. “Vai tomar no cú! Baixa essa merda!”
De um e do outro lado da estrada, em cada lugarejo que atravessamos, ficam as “zonas”, bares e restaurantes que servem, na realidade, de bordeis para os camionistas, casas miseráveis onde as “perversas” ficam encostadas à porta, mal iluminada.
Ali, um dos perigos de guiar à noite, são os animais— vacas, burros. cavalos— que aparecem perdidos na estrada. Em pouco espaço de tempo, passámos por duas vacas na escuridão da pista. “Com esse balanço, se pega uma vaca, não dá para fugir”. Outro problema são “os sem vergonha”, os polícias rodoviários brasileiros que escolhem a noite para mandar parar os camiões e extorquir dinheiro sob o pretexto de uma anomalia imaginária no camião.
Dia 10 de Julho. A aurora desponta em tons cor de rosa no céu do sertão da Baía. A estrada a princípio é apenas uma recta quase infinita feita de luzinhas e que se perde na montanha que cobre o horizonte. Uma linha branca de neblina atravessa-a na horizontal. A luz descobre povoações de casebres em várias cores, telha velha que ameaça desabar, habitantes que ficam junto às lombadas tentando vender fruta, peles, berimbaus, camionetas de caixa aberta servindo de carro escolar para dezenas de alunos de camisa branca.
O sertão da Baía tem vagas semelhanças com o oeste americano, sobretudo quando, a caminho de Feira de Santana, a estrada se estende numa recta de mais de 50 quilometros e a paisagem irrompe em estranhas formações rochosas, gigantes de pedra que ora lembram um pénis, ora uma boca rasgada na pedra. De vez em quando, uma voz surge no rádio do camião avisando que há polícia na estrada: “Os botina (a polícia) ‘tão caíndo em cima da galera, tem aí botina!”
Os camiões mais antigos, passam por nós com dizeres na parte de trás: “De onde venho trago amor”, “venci a distância, matei a saudade”, “meus filhos, minha vida”, “hoje aqui, amanhã não sei”, “70 passar, 100 atrapalhar”, “abençoado por Deus”, “viva e deixe viver”.
Norberto evita falar sempre nos perigos da estrada quando vai a conduzir mas por vezes é impossível esquecê-los. Quando a noite estrelada do sertão se abate sobre uma região muito pobre e perigosa da Baía, deparamos com um carro à beira da estrada todo inclinado, as luzes acesas, numa posição esquisita, encostado a uma árvore. “Viu? Viu aquele carro? ‘Tava sendo roubado. ‘Tava um cara pelado e o outro em pé, roubando”.
Duas da manhã de 11 de Julho, posto de gasolina de Juazeiro, Baía. Um solitário empregado da lanchonete, aberta 24 horas, tenta perceber a versão dobrada de um filme sobre Mike Tyson. Um ou outro camionista acerca-se do balcão, de toalha ao ombro. “Não entendi nada”, comenta o empregado, varrendo vagarosamente o chão da lanchonete.
Os postos são os portos de abrigo dos camionistas, onde dezenas de camiões estacionam durante a noite em segurança, com lanchonetes abertas toda a noite, onde é possível conversar com os outros irmãos da estrada, beber café, comer carne de sol, onde há telefone, fax, onde se pode tomar um banho, comprar souvenirs, autocolantes que pretendem dar força espiritual a quem se sente sózinho na estrada e onde se lê “Se Deus é por nós, quem é contra nós?”
Nesses locais, vê-se gente de todo o Brasil: um casal de Santa Catarina viajando com um bébé que alimentam a biberon na lanchonete, camionistas nordestinos, de chapéus pretos e abas largas viajando em camiões que ameaçam desfazer-se, vagabundos pedindo boleia, prostitutas dando as boas vindas aos “caminhoneiros”.
Primeira paragem no Ceará, tarde de dia 11: “Oi meu irmão, vamo dar uma lavagem geral aí, meu irmão?”, pergunta um espontâneo lavador de camião. Norberto diz-lhe que não mas o rapaz não desiste. Daí a pouco pendura-se em cima do Scania e começa a lavar tudo sem autorização. Como não pede sequer para fecharmos os vidros, a água entra para dentro da cabine. Norberto chega e vê o rapazote em cima do camião. “Eu disse a você que não queria lavar”. Arranca com o camião e o rapaz só tem tempo de pular desajeitado do topo da cabine para o chão, sob as risadas dos colegas biscateiros.
Ali, toda a gente pede ou oferece qualquer coisa. “Tem cartão telefónico?”, “tem 10 centavos?”. As crianças que trabalham a colocar areia nos buracos da estrada, mal vêem um camião a aproximar-se, pedem moedas fazendo sinais com os dedos. Correm atrás dos camiões até lhes atirarem 10 centavos.
O Ceará transpira calor, povoações minúsculas entre centenas de quilómetros de Sertão, os habitantes caminhando lentamente, os homens em calção, as mulheres sorrindo, acenando para o camião. Há imagens que se colam ao cérebro: uma família—o pai, a mãe e o filho— a cavalo, uma vaca morta à beira da estrada, um grupo de homens esquartejando uma vaca, que tinha sido atropelada, à beira da estrada, um camião todo virado ao contrário, a carga espalhada em redor.
De repente, a norte de Icó, o sol esconde-se por detrás das montanhas que acompanham a estrada para Fortaleza, como se fossem vigias. Quando a escuridão se abate sobre o sertão, uma abóboda estrelada convida a espetar a cabeça para fora da janela e sorver o espectáculo, uma brisa morna invadindo a cabine.
É noite de sábado. Os arredores de Fortaleza transpiram animação, forró emanando dos bares, as mulheres circulando aprontadas para participar no baile mais próximo. Os “botina” parecem ter decidido tirar a noite para caçar uns reais. “Sem vergonha, filhos da puta”, rosna Norberto depois de ter deixado mais 10 reais nas mãos de um polícia para que ele não o multasse.
Fortaleza, o paraíso tropical, cidade do sol, está ali ao alcance da mão, mas a viagem termina no ambiente sórdido de uma bomba de gasolina repleta de prostitutas. “Oi caminhoneiro”, saúda em jeito de boas vindas uma mulata cearense, “menina de programa”, meneando as ancas debaixo de uma saia branca curtíssima.