estradas perdidas

Atrás de casa, encoberta por tufos de erva daninha, silvas e bidões abandonados, o comboio de janelas iluminadas vinha das Quintãs e silvou depois do túnel em curva, em direcção a Aveiro. Ali ao lado há uma estrada, a minha primeira estrada. Mulheres e homens cruzam-na impelindo teimosamente os pedais das bicicletas. Junto à vitrine de um pronto-a-vestir lê-se "Modas Katita". De uma taberna, saem dois homens que se dirigem para duas Famel-Zundapp. Estrada perdida.

2004-11-30

"Mas senhor presidente..."

Palácio de Belém, início da tarde de ontem. "Mas senhor presidente, eu tenho aqui no bolso uma solução...", balbucia Pedro Santana Lopes. "Oh Pedro, eu não me quero chatear consigo, há uma prática institucional de solidariedade e de respeito para com os outros que me leva a dizer-lhe de uma forma clara e breve que desta vez não dá mais, o que significa, para que isto fique claro para si e para todos os portugueses que uma vez mais, vamos ter que apelar à nossa capacidade de civismo e o civismo é uma das características basilares das sociedades democráticas, tolerantes e multi-étnicas, como eu dizia Pedro, chegou a hora de percebermos de uma forma serena, constitucional e livre se queremos continuar a manter uma situação que a meu ver se vinha revelando particularmente desagradável e embaraçosa e que..."
Santana Lopes: "Chiça, eu vou-me é pirar daqui..."

2004-11-28

O Benfica dá cabo da gente

O adepto do Benfica que caiu esta noite do segundo anel do Estádio Municipal de Leiria morreu cerca das 20h40 no hospital local. Em conferência de imprensa no final do jogo entre a União de Leiria e o Benfica, que o clube visitado venceu por 1-0, o comissário Rafael Marques, coordenador da operação de segurança da partida, explicou que o benfiquista terá ido contra um varadim do estádio após uma jogada de perigo do Sport Lisboa e Benfica, acabando por cair desamparado sobre um corrimão, às 19h10. O comissário adiantou que o adepto, que se encontrava no sector 5 do estádio, já tinha sido advertido" pelas autoridades devido ao seu "comportamento demasiado exuberante" e tinha sido "convidado a sentar-se várias vezes".
O Benfica dá-nos cabo da cabeça a todos. Está-nos a matar, não é a um, é a seis milhões. Paz à alma de mais um que morreu a sofrer por ti.

Leandro, Ireneide e um micro-ondas

Leandro é tímido, meio caboclo, cabelo em cachos pretos, olhar assustado. Ireneide é forte, foi ela que batalhou para arrancar esse caboclo envergonhado lá do sítio, a 32 quilometros em estrada de chão até Marilac, mais um tanto até Valadares, Governador Valadares, Minas Gerais. Leandro veste uma t-shirt do Atlético Mineiro que o frio húmido da Caparica obrigou a cobrir com um blusão preto comprado aos indianos da pracinha. Ireneide é gordinha, baixinha, cabelo preto em forma da copa de um pinheiro manso e forte, não esqueçam, Ireneide é forte. Arrancar o caboclo Leandro das galinhas, do porquinho, do feijão, das tarde de domingo torcendo pelo Atlético ouvindo no rádinho de pilhas enquanto jogava sinuca com Tio Zé, embalados numa bela de uma cachaça mineira, não foi fácil não. O mais difícil foi afastar Leandro da vidraça traseira da combi quando vóvó Maria mais o primo Washington seguraram Leandrinho que queria vir correndo atrás. Naquele dia de há dois anos, Leandro chorou o tempo todo, em surdina, no ónibus que cruzou Belo Horizonte de noite para chegar de manhã ao Rio. Portugal era então uma quimera, um sonho. Ireneide dizia: "Leandro, tu já é pobre, mais pobre ainda tu não vai ficar". Dois anos. Ireneide mata a saudade no orelhão, perdão, na cabine telefónica lá da Avenida do Mar, em Santo António da Caparica. No Natal de 2003, prometeu a Leandrinho um carrinho igual ao da televisão. "Mamãe te ama, viu, mamãe não esqueceu você, meu filho, a gente está trabalhando muito, meu filho, logo logo vamos chamar você para vir morar com a gente". Não está fácil. Leandro, que trabalhava de forma intermitente em trabalho de construção civil que ía e vinha, aparecia e desaparecia como as vagas da Caparica, anda desanimado. Cada vez está mais difícil conseguir trabalho. Cansou de esperar as carrinhas que páram ou não páram ao fim da madrugada na esquina da Caixa Geral de Depósitos, na Caparica. Distribuiu publicidade durante dois dias mas desanimou outra vez. Juntou-se ao grupo dos desanimados, os que conversam em bando na pracinha antes de rumarem ao Serginho para um Superbock, fzzzz, essa "cerveja portuguesa que enche o estômago da gente..."Ireneide fica trabalhando pelos dois, lavando escada, trabalhando em duas, três casas diferentes para pagar a renda no fim do mês.
Foi ontem que eu vi o Leandro e a Ireneide pela primeira vez. Para eles, o português que acabara de colocar jornais no eco-ponto era um ser invisível, de primeiro mundo. Ireneide tinha os olhos grudados naquela caixa branca e metálica do lado do eco-ponto. "Está bom, anda, ajuda..." Leandro caboclo lá veio no seu passo tímido. Estava a chuviscar mas quem molha alguém que acaba de encontrar um micro-ondas que um português deitou fora, no meio de tamanha lixarada? "Hoje a gente deu sorte..."pensou Ireneide. Leandro pegou no lado direito do aparelho. Se a mulher fica feliz, que se dane, eu quero é beber uma lá no Serginho que esse frio está de roer osso de carrocho". O português sumiu à sua vida de português, de primeiro mundo. Leandro e Ireneide carregaram o micro-ondas para dentro da casinha, um anexo por detrás de um antigo restaurante. Ali perto, famílias de portugueses almoçavam frango com batatas fritas, enchendo as mesas de uma churrasqueira. "Tu é pobre, mais pobre ainda tu não vai ficar"





Parafraseando

Adelino Gomes, Jornal Público de 28 de Novembro de 2004, página 44: "Parafraseando Nuno Ferreira, ontem, aqui, digam-me que há passeios de Outono para fazer, leituras para começar, canções para tocar. Responder-vos-ei que..." Oh Adelino, por quem sois, parafraseie sempre que quiser! Um grande bem haja! Digam-me que há passeios e leituras e discos para escutar, responder-vos-ei que vou ler o Adelino Gomes, oh yeah!!!

2004-11-27

Andamos precisados de flores

Azáleas ainda por abrir em vários tons de rosa, amores-perfeitos, malmequeres amarelos e muitos ciclames vermelhos e brancos estão a ser plantados na Avenida da Liberdade depois das turbas do Euro 2004 e das festas populares terem arrasado com o que restava nos canteiros.
Só uma coisa desgosta quem as anda a plantar: nos coloridos canteiros já há, aqui e ali, uns poucos espaços vazios no lugar onde deviam estar flores. "O seu ar viçoso tornou-se de tal forma apelativo que houve quem não resistisse a levar uma para casa". Andamos todos precisados de flores, é o que é. Não levem a mal. "Eu amo-te", diz o rapaz de popa à Tintin e acne nas bochechas envergonhadas. "Oh, tão bonitas", diz ela, "onde as arranjaste?" Ele coça a borbulha maior, mais irritante: "Oh, comprei numa florista da Avenida da Liberdade".

Miss U Babe

Há sempre um milhão de coisas a fazer, pagar a electricidade, pagar a água, correr para o emprego, falar com a administração do prédio, levar o cão a passear, explicar ao Gonçalo que o teste de Geografia é apenas mais uma pequenina pedra no caminho, há sempre coisas, muitas coisas. Resta pouco tempo para ver o mar contigo, observar as gaivotas a fugirem assustadas do Grishka contigo, beber uma cerveja sem alcool num bar do Cais do Sodré naquelas tardes de sábado em que não há ninguém, tu a pedires um gin tonic e a garantires que guias direitinho até à Caparica, resta pouco tempo para abrir os olhos e ver-te a olhar para mim como se fosse a primeira vez. Resta pouco tempo. Os rapazes? The Kids are allright. Miss U Babe.

2004-11-26

A hora de Henrique Chaves

Até há dias, haveria algum português que soubesse quem era Henrique Chaves? E mesmo sabendo que Henrique Chaves é ministro da Juventude, Desporto e Reabilitação, quem se interessa? Acontece que este homem conseguiu, de repente, e num momento de brilhante lucidez, o seu lugar na História. H.C disse ou terá dito que não ía visionar o DVD do Benfica-Porto entregue em mãos por uma delegação da direcção do grande SLB e que por ele, "o atirava pela janela"... Neste preciso momento existem seis milhões de portugueses que odeiam visceralmente Henrique Chaves e que gostariam de fazer justiça pelas próprias mãos. Um dia H.C. será recordado como o homem que caíu em desgraça por querer atirar um DVD do Sport Lisboa e Benfica pela janela fora. "Estás fod..."

A única ocorrência

Ao fim da tarde, a RONDA é uma rotina na secção de notícias locais... e uma chatice. É preciso ligar para a PSP, para a Brigada de Trânsito da GNR (BT), para os bombeiros e dizer: "Boa tarde, daqui fala Y do jornal Z, eu desejava falar com o oficial de dia". Uns minutos mais tarde, com sorte, aparece a voz enfadada do oficial de dia: "Olhe, até ao momento, está tudo calmo. E ainda bem, não acha?" Na quinta-feira, o oficial de dia na BT era um brincalhão: "Ocorrências? Olhe a única ocorrência...foi o Sporting ter ganho 4-0 aqueles gajos em Tbilisi..."

2004-11-25

Blue Eyes Cryin In The Rain

Se um dia tiver de escolher as minhas canções country favoritas esta estará na minha lista juntamente com...sei lá..."Sweet Dreams" e "Lost Highway"...


Blue Eyes Cryin' In The Rain
de Fred Rose (cantada e celebrizada por Willie Nelson)

In the twilight glow I see her
Blue eyes cryin' in the rain
When we kissed goodbye and partedI
knew we'd never meet again
Love is like a dying ember
And only memories remain
And through the ages I'll remember
Blue eyes cryin' in the rain.
Someday when we meet up yonder
We'll stroll hand in hand again
In the land that knows no parting
Or blue eyes cryin' in the rain.

2004-11-24

Também quero ser ministro

Com tanta remodelação governamental e a qualidade que as vem caracterizando, qualquer dia, em breve, soon, chega a vez aqui ao Estradas Perdidas. Sempre quis ser ministro, ministro dos excluídos e deserdados, uma espécie de Robin dos Bosques no governo. Comigo é que o Bagão Forreta não fazia farinha, tinha de haver orçamento para eu pôr os sem abrigo e os sem feijão na panela a festejar na Kapital até às tantas.

2004-11-18

"Vergonha de mim próprio"

"Sou de Braga". Apetece dizer: "escusavas de o dizer, a pronúncia atraiçoa-te" . Artur Rogério, olha para nós detrás do cansaço e das rugas vincadas de quem parece ter bem mais que 42 anos. Há 15 dias ainda estava na Alemanha, a trabalhar nas obras, em Munique, arregimentado por um sujeito de Viseu. Agora está ali, a queixar-se dos pés e do infortúnio. "Fui para a Alemanha enganado, eramos 30, a trabalhar para um homem de Viseu. Trabalhámos três meses. Quando a obra acabou, o nosso patrão desapareceu com 200 e tal mil marcos".
Ao frio dos dez graus negativos do Inverno alemão, ainda dormiram num barraco onde foram ajudados pela polícia e por populares. "Dizem que os alemães são racistas? Comigo, foram espectaculares". A polícia germânica ainda lhe pagou a ida de comboio até à fronteira. Depois, veio à boleia. Demorou três dias, entre boleias boas, como uma que o trouxe desde França até Toledo, em Espanha, e caminhadas dolorosas pela montanha espanhola à noite. "Fiquei com os pés todos arrebentados e tive de largar um dos meus sacos".
Há uma semana, Rogério chegou a Lisboa, depois de uma boleia de Campo Maior até à Moita. Agora, é um sem abrigo, mais um, a dormir debaixo de uns cartões à entrada da Estação de Santa Apolónia, que à meia-noite, mandam toda a gente para fora da gare. "Um senhor que 'tava a limpar vidros na estação, deu-me um ticket para comer numa tasca ali perto e um maço de tabaco. Á noite, como o que me dão nas carrinhas". As carrinhas pertencem às equipas da noite da Comunidade Vida e Paz.
Rogério, que diz falar francês e italiano, em tempos já trabalhou no Hotel Turismo, em Braga e antes de ir para a Alemanha, era empregado de balcão num café da Póvoa de Lanhoso, não quer regressar ao norte. "Não quero, não quero voltar". Baixa os olhos e fita o chão de cimento, em silêncio, depois explica: "Sinto-me com vergonha, com vergonha de mim próprio".

2004-11-17

REASON TO BELIEVE

Reason To Believe
de Bruce Springsteen

Seen a man standin' over a dead dog lyin' by the highway in a ditch
He's lookin' down kinda puzzled pokin' that dog with a stick
Got his car door flung open he's standin' out on highway 31
Like if he stood there long enough that dog'd get up and run
Struck me kinda funny seem kinda funny sir to me
Still at the end of every hard earned day people find some reason to believe
Now Mary Lou loved Johnny with a love mean and true
She said "Baby I'll work for you every day and bring my money home to you
"One day he up and left her and ever since that
She waits down at the end of that dirt road for young Johnny to come back
Struck me kinda funny seemed kind of funny sir to me
How at the end of every hard earned day people find some reason to believe
Take a baby to the river Kyle William they called him
Wash the baby in the water take away little Kyle's sin
In a whitewash shotgun shack an old man passes away
take his body to the graveyard and over him they pray
Lord won't you tell ustell us what does it mean
Still at the end of every hard earned day people find some reason to believe
Congregation gathers down by the riverside
Preacher stands with his Bible groom stands waitin' for his bride
Congregation gone and the sun sets behind a weepin' willow tree
Groom stands alone and watches the river rush on so effortlessly
Wonderin' where can his baby be
still at the end of every hard earned day people find some reason to believe

OS MEUS DISCOS FAVORITOS DE 2004 (lista actualizada)

Loretta Lynn-Van Lear Rose
Holmes Brothers- Simple Truths
Ellis Hooks- Uncomplicated
Otis Taylor- Double V
J.J. Cale- To Tulsa & Back
Patty Griffin- Impossible Dream
Grey Delisle- Graceful Ghost
Norah Jones- Feels Like Home
Iron & Wine- Our Endless Numbered Days
Mindy Smith- One Moment More
Robin And Linda Williams- Deeper Waters
Laura Veirs- Carbon Glacier
Anne McCue- Roll
Alecia Nugent- Alecia Nugent
Allison Moorer-Duel
Polly Paulusma- Scissors In My Pocket
Richmond Fontaine- Post To Wire
Ben Harper & Blind Boys Of Alabama- There Will Be A Light
Gurf Morlix- Cut N Shoot
Lori McKenna- Bittertown
Jesse Sykes & The Sweet Hereafter- Oh My Girl
Black Keys- Rubber Factory
Paul Geremia- Love Murder & Mosquitos
Kasey Chambers- Wayward Angel
Buddy Miller- Universal United House Of Prayer
Mason Jennings- Use Your Voice
Jeffrey Foucault- Stripping Cane
Alan Jackson- What I do
Drive By Truckers- Dirty South
Tift Merrit- Tambourine
Todd Snider- East Nashville Skyline
Jon Dee Graham- Great Battle
Tres Chicas- Sweetwater
Devendra Banhart- Rejoicing in The Hands
Hem- Eveningland
Dirk Powell- Time Again
Dave Alvin- Ashgrove
U2- How To Dismantle An Atomic Bomb
Nora O' Connor- Til The Dawn
Ray La Montagne- Trouble
Mofro-Lochloosa
Tarbox Ramblers- A Fix Back East

2004-11-11

As Minhas Coisas (clique aqui)

Eu sei. Este blog aborrece-o, tem posts demasiado longos e entediantes. Você quer mensagens frescas, jovens e vivificantes. Quer que mexam consigo, que lhe sussurrem ao ouvido. Quer um blog que lhe lembre a primeira vez que bebeu Seven Up num dia quente de Verão e namorou com a filha do vizinho. Nós temos aquilo que precisa. Em As Minhas Coisas, o blog do momento, encontra tudo isso e muito mais. Senhoras e senhores, As Minhas Coisas, o blog da minha sobrinha!

P.S. Quem se meter com ela vai ter de se meter comigo :)

2004-11-09

A Dona Amélia estava a dormir

“Tinha ido encosta abaixo, lá ia a Dona Amélia…”comenta um vizinho entre o desgaste de uma noite sem dormir e a ironia de quem não se importaria muito de perder a Dona Amélia. Veste um falso casaco de peles ou as peles não são verdadeiras ou é a Dona Amélia que não enquadra com aquelas casas raquíticas, em branco, penduradas periclitantes sobre a encosta. “Estive a ver um bocadinho de televisão, como é meu costume e depois adormeci no sofá…veja o senhor que nem sequer fui à cama, não preciso, quando me dá para adormecer na sala, adormeço, vivo sozinha…”
O bombeiro veste aqueles coletes amarelo berrante todo protecção civil e entra em cena com a falsa arrogância de um profissional: “A senhora devia estar ali atrás porque nós vamos precisar de colocar aqui umas fitas de protecção e isto aqui não está seguro para ninguém, ok? E você, se não se importa, faz as suas entrevistas ali…”
A ravina abriu, desmanchou-se enquanto a Amélia mergulhava no sono. “Foi tamanho o barulho, parecia um tremor de terra”, chora a Dona Josefina. “Fiquei em choque que nem me conseguia mexer. Valeu-me a minha Cláudia. Ela só dizia: “Oh mãe, vamos embora, oh mãe vamos embora…” E eu a ver o raio da televisão a tremer, só pensava num tremor de terra. Afinal, era a casa a ir abaixo, veja lá o senhor há quantos anos o maldito senhorio não devia ter feito obras aqui. Nós sempre a pedir e ele a dizer que não há dinheiro, não há dinheiro”. Rosa, a filha atarracada e gorda da Dona Josefina pausa o cigarro e comenta, entre dentes, enegrecidos pela nicotina: “Puta que o pariu que o tem todo debaixo do colchão! Ele que me apareça aqui hoje que o racho todo!”
Daniel é o marido de Rosa. Não vivem ali. Felizmente que nunca precisaram. Quando Rosa casou, bem mais elegante e sem aqueles papos a tornear-lhes o olhar de mãe cansada, foram viver lá mais para cima. “Viemos aqui para ajudar a minha sogra. Desde ontem há noite já acartei sofás, o televisor, a máquina de lavar. Você venha aqui comigo”.
Entro num corredor estreito onde evito uma velhinha de bata azulada, olhar distraído, sentada num banco caiado de branco, tudo ali parece caiado de branco. Não…a porta de madeira da casinha da Dona Josefina está pintada em azul marinho e tem uma ferradura na parte de cima. As vidraças da janela da casa da Dona Amélia estavam compostas por umas pequenas cortinas vermelhas e brancas aos quadrados. A velhinha não se move, nem quando alguém desenrola a enorme mangueira vermelha e percorre o corredor apertado com ela não mão. “É a minha mãe”, explica a Dona Josefina, “essa é outra que mais dois minutos e só parava lá em baixo…”
“Veja só isto”. Daniel é um rapaz homem de idade indecifrável. Pode ter entre os 28 e os 38 anos. Veste uma camisola de gola alta de lã azul escura, traz os olhos inchados e levemente inflamados e o cabelo aloirado desalinhado. Por baixo da camisola, descobre-se uma t-shirt branca toda amarrotada. As calças de ganga estão pintalgadas de cal, pó, manchas escuras. Os sapatos estão cobertos de poeira. “Veja-me isto, veja-me este milagre. A miúda, a Cláudia, dorme ali, dormia ali…”
O ali é agora um grande buraco sobre o abismo. Em primeiro plano, a torrente de lama, pedaços de mobília, roupas diversas, ramos, bocados do que foi uma divisão, tijolos, cimento, lixo, tudo mastigado e despejado encosta abaixo. Lá em baixo, o mundo dos outros, o quintal com a palmeira, a casota do cão- onde está o cão?- a vivenda verde desmaiado, a praceta. Tudo imóvel, nem uma vivalma, dir-se-ia que o mundo dos outros dormita, indiferente ao rebuliço trágico dos que vivem na encosta. “E se a Cláudia estivesse deitada, diga-me lá? Por milagre, estava a ver televisão com a minha sogra…”
“Não vão para aí, repete o bombeiro, “já disse aos senhores para não se aproximarem dessa zona, isso aí pode ruir a qualquer momento.” Reage o Daniel, o peito por debaixo da camisola de lã azul escura a inchar de raiva e cansaço: “Porra, isto aqui é meu! Não posso mostrar ao homem a minha casa? O que resta dela. Vocês se ao menos chegassem a tempo mas não chegam! Onde é que estavam quando esta merda estava toda a ir abaixo?”
Chega a jornalista da TVLI. Ninguém se lembra mais da Dona Amélia. “Minha nossa senhora”, comenta entre dentes o bombeiro que segurava a mangueira. Até o aí enraivecido Daniel se esquece da Rosa e da sogra: “Disto é que a gente precisava cá no bairro…” Apressa o passo e quase choca de frente com a repórter, a saia curta, um metro e setenta e cinco de pura sedução feminina, os cabelos escuros caídos sobre os ombros, uns olhos de amêndoa fixando Daniel: “Você é do bairro? A sua casa desabou?”
Daniel coça o pescoço já de si avermelhado e faz que sim com a cabeça. “E a senhora, a senhora também vive nesta casa?” Em segundos, juntam-se no estreito corredor a Dona Amélia, a Cláudia, a Dona Josefina, mais o Daniel e uns tantos vizinhos que até aí haviam permanecido na penumbra.
Fora daquela pequena vila de casas pequenas, reúne-se entretanto uma mole de curiosos em redor da carrinha da TVLI. “Viste-me aquela gaja?”, “Tu já não tens andamento para a tua, quanto mais para aquilo”, “eh la, é hoje que a Vila Américo vai aparecer nas notícias!”. Um rapaz corre ladeira acima a chamar os amigos. O empregado do Café Américo espreita a pequena multidão em frente e apressa-se a sintonizar o televisor na TVLI: “Os gajos dizem que a Vila Américo vai aparecer no Jornal da Uma!”
A Vila Américo nunca mais é a mesma. “Oh Laura”, diz secamente um operador de câmara, “assim não pode ser, vão aparecer todos em contraluz”. Laura está mais preocupada com o facto de ter apenas mais dez minutos antes de entrar em directo. “Bom, vai ser assim, começo por entrevistar a Dona Josefina, depois entrevisto a Cláudia e por fim o senhor Daniel. Pode ser? Depois, você, Daniel vem comigo e com este senhor que tem a câmara, aponta para o buraco e explica tudo o que aconteceu. Pronto”.
Laura ajeita o cabelo, segura o microfone por debaixo do queixo. “Laura, não dá, está em contra luz”, diz o operador de câmara, encolhendo os ombros, a mascar pastilha elástica, preocupado com o próximo serviço, em Vila Franca de Xira, às três da tarde e a pensar onde há-de ir almoçar. “Ouve lá, onde é que foram buscar essa gaja?”, pergunta o assistente, segurando o cabo que liga ao carro de exteriores. “Sei lá”, solta o operador, “acho que é a nova namorada do editor do Jornal da Uma...”
Dez minutos para as duas da tarde, Café Américo. “Oh Zé, então a Vila Américo aparece nas notícias hoje ou amanhã?” O Zé já coça a cabeça, os dois braços sobre o balcão: “É agora, depois do intervalo, depois dos sabonetes ou quem é que pensas que paga isto?” Um bruáááá da rapaziada do fundo do café e faz-se silêncio. “É agora, é agora”. Uma apresentadora loira de lábios muito pintados fala com olhar sério directamente para a plateia do Café Américo: “Ontem à noite, viveram-se momentos de angústia na Vila Américo, em Sacavém. Pelo menos duas casas ficaram destruídas e seis pessoas desalojadas quando estas ruíram sob o efeito do mau tempo que se fez sentir. No local, temos agora em directo a repórter Laura Assunção”.
“Ei, g’anda borracho, oh Laura, filha, passa cá mais vezes!”, grita um rapaz com o boné virado ao contrário e brinco na orelha. “Deixem ouvir, deixem ouvir”, ordena o Zé. Laura surge no ecrã do televisor. Custa a crer que um anjo daqueles se tenha dado ao trabalho de visitar a Vila Américo. “Assim é, Sofia, temos connosco a Dona Amélia que nos vai...” A Dona Josefina, ajeitando a bata: “Josefina, Josefina...” Laura: “Temos aqui a Dona Josefina...”
Dois minutos mais tarde. “Ei, olha o Daniel, parece mais gordo! Ei, a apontar lá para baixo, o bacano, parece um actor de cinema”. Comentário de um segundo observador: “Foi a miúda que lhe disse para apontar. O Daniel era lá gajo para se lembrar de uma fita dessas, o Daniel é burro que nem um calhau...Olha, já acabou. Caramba, e agora Vila Américo? Só isto?” O Zé vira-se para tirar um copo para a imperial do bombeiro: “Ai tu pensavas que isto era um dia na vida da Vila Américo?”
A Dona Amélia entra de mansinho. “ Zé, filho, tira-me um descafeinado”. O Zé: “Então Dona Amélia, não foi entrevistada? A sua casa esteve quase a ir...” A Dona Amélia entre a tristeza e a resignação: “Oh filho, mas não fui. Dizem que eu não vi nada, não ouvi nada porque estava a dormir. Ainda perguntei à moça da televisão o que é que ela achava, se me iam dar uma casa nova...olha, ficou a olhar para mim feita parva”.

Regresso a casa

Cross Of Flowers
de Jeffrey Foucault (clicar no título para aceder ao seu site)


There's a cross of flowers at the roadside
Where some fool bought it two years back
There's an orchard gone to hell
Beside a burned out one room shack
There's a thousand sparrows falling
In a thousand shades of black
I'm coming home
There's a steeple on the skyline
Like a single iron nail
There's a windmill doing nothing
And a low moan on the rails
Where the coal train takes the corner
And the light begins to fail
I'm coming home
I'm coming home
There's a red barn in the half light
And a white frost on the shade
And in the bars down off the main drag
They're drinking down what they got paid
And I wonder in all my leaving
If I ever could have stayed
I'm coming home
There's a junked out car in the tall grass
It ain't ever gonna sell
And Jimmy's raising daughters
And Jack's out raising hell
And I always said I loved you
I never said I loved you
well I'm coming home
I'm coming home
I'm coming home

2004-11-07

Benfica-4-Setúbal-0 ou a felicidade de um presente não tão miserável

São 31 minutos de jogo. Simão Sabrosa bate o canto na esquerda, Karadas sobe ao segundo andar junto ao segundo poste e aí vai disto! Marco Tábuas vai buscá-la, está ali junto à rede. 1-0.
50 minutos de jogo. Karadas recebe a bola entra na área contrária, centrar da direita para Sokota. O croata recebe-a na pequena área, ajeita-a e traularau, mais um! 2-0.
71 minutos Ricardo Chaves perde a bola no meio campo, quem o mandou perdê-la, e o Benfica faz o que quer. Brinca entre Simão, Sokota e Geovanni até chegar à área. Aí, Veríssimo e Hugo Alcântara tentam tirá-la de junto da baliza mas estava lá Geovanni que remata e são três!3-o.
90 minutos Ds Santos na esquerda coloca no meio para Simão Sabrosa, que domina e peito, entrana área como uma senhor e remata muito forte para o fundo das redes do pobre Tábuas.4-0.
O Benfica, essa equipa que vive do passado glorioso e num presente miserável, segundo alguns arautos de São Mamede de Infesta, recuperou a liderança. Quem diria?

2004-11-05

Visto lá de cima o mundo é tão bonito...

From A Distance
Dedicada a todos os desiludidos pela vitória eleitoral de George W. Bush

de Julie Gold mas cantada de forma maravilhosa pela Nanci Griffith (clicar no título para saber mais sobre ela)

From a distance the world looks blue and green
And the snow-capped mountains white
From a distance the ocean meets the stream
And the eagle takes to flight

From a distance there is harmony
And it echoes through the land
It's the voice of hope, it's the voice of peace
It's the voice of every man

From a distance we all have enough
And no one is in need
There are no guns, no bombs, no diseases
No hungry mouths to feed

From a distance we are instruments
Marching in a common band
Playing songs of home, playing songs of peace
They're the songs of every man
God is watching us, God is watching us
God is watching us from a distance

From a distance you look like my friend
Even though we are at war
From a distance I can't comprehend
What all this war is for

From a distance there is harmony
And it echoes through the land
It's the hope of hopes, it's the love of loves
It's the heart of every man

It's the hope of hopes, It's the love of loves
It's the song of every man

FOBIA SOCIAL

Testemunho de fobia social

(Clicando no título acima, em azul, obterá informação, outros testemunhos e pistas com possibilidades de ajuda. Para que ninguém tenha vergonha de ter fobia social e perceba que é possível vencê-la)


Nunca saberei explicar ao certo porque é que adoeci com uma fobia social, se bem que os médicos me tenham dito que como pessoa tímida e retraída sempre fui propenso a fugir das outras pessoas e refugiar-me no meu seguro casulo. Alguns acontecimentos, espaçados no tempo mas todos eles perturbadores, precipitaram a minha crise em finais de 1992.
Dia a dia vivia frustrado com o meu trabalho. Comecei por odiar os telexs, depois comecei a odiar o chefe, até que por fim já odiava os meus colegas pela sua descontracção e felicidade junto da minha frustração e quando dei por mim, toda a gente me parecia odiar e eu odiá-los a eles.
Assim, em meados de 1991, eu era um sujeito olheirento, escanzelado e algo perturbado, que deixava esvaír todas as minhas forças numa luta imbecil e inglória contra a camisa de forças que era para mim a agenda do jornal diário. Não era raro o dia em que cumpria a meia hora de travessia de barco entre Lisboa e o Barreiro, onde vivia, de semblante carregado.
Da primeira vez, foi tudo muito estranho. Sentara-me nos bancos de madeira do barco e ouvi alguém sussurrar: “ui, este...” Olhei para a frente e vi duas mulheres de meia idade, a mais incomodada refugiando-se atrás de uns óculos tipo ray-ban. “Tem um ar sinistro...” sussurrava para a amiga do lado. Lembro-me que trazia uma “Time” e a velha pasta preta e que tentei responder ao embaraço folheando a revista. Em breve, descobriria que elas estavam acompanhadas por vários colegas de trabalho. O grupo rodeava-me de frente, sentados nos bancos de madeira à minha frente e dos lados.
Nestas alturas, uma pessoa pergunta-se a si mesmo: que mal fiz eu? Que cara deveria fazer? Estou a fazer cara de parvo, de imbecil?”. As primeiras palavras “ui, este” e “sinistro” paralisaram-me completamente. Lembro-me que uma das pessoas do grupo, uma mulher, sentada do meu lado direito, começou a dialogar com um homem que estava do lado esquerdo. Não senti forças nem ânimo para sugerir a um deles que se sentasse no meu lugar. Sentia-me como que crucificado e ali me deixava estar. Em breve, os comentários sob a minha presença corriam pelo banco de madeira à minha frente. “Ele não é...”, dizia baixinho, como que convencida que eu não ouvisse, uma mulher gorda, de revista “Maria” no regaço, fazendo sinal de pouco tino na cabeça. “Ah”, disse a que estava ao meu lado, “eu já tinha percebido...”
Quanto mais me sentia humilhado e vexado, mais insistia comigo próprio para me conservar no lugar, custasse o que custasse. Tinha comprado um gofre antes de entrar para o barco e nem dei por ter amarfanhado totalmente o papel do gofre na minha mão suada. Por fim, já não sabia para onde deveria olhar. Tudo à minha frente era sussurros e risinhos, a situação era insustentável mas durante a meia hora da travessia de barco, aguentei-me estoicamente no lugar.
No extremo do banco, juntamente com as mulheres, viajava um homem. Como único elemento masculino do grupo, descarreguei nele toda a minha raiva. Olhei para ele com um semblante carregadíssimo à espera que desviasse o olhar. Qual quê... A resposta não se fez esperar: “Este deve gostar de levar no rabinho...”
A frase teve o efeito em mim de uma bomba de napalm. Era a humilhação, o vexame, a derrota, as palavras que gostaria de ter pronunciado e não pronunciei, o facto de ficar ali, sentado, preso ao banco de madeira, o papel amarrotado na mão. As pessoas saíram do barco com aquele troar habitual e eu ali fiquei. Devo ter sido o último a saír. Nesse dia cheguei a casa, lembro-me perfeitamente que estava lá a minha mãe e a minha mulher estava no oitavo mês de gravidez. Tive de fingir como se nada se tivesse passado.
Na travessia de barco, comecei a refugiar-me no bar porque não conseguia já sentar-me à frente das pessoas. Aterrorizava-me a ideia de ser confrontado de novo com aquelas pessoas. E se elas me aparecessem de novo à frente? E se eu realmente estivesse com um ar sinistro e cadavérico e assustasse as pessoas? Outras, nessa eventualidade, notariam o meu descontrole.
Quando, por vezes, ganhava coragem para subir as escadas da antiga segunda classe, ia sentar-me exactamente lá no fundo, num banco que me deixava virado para a parede. Podia ouvir as vozes das pessoas atrás de mim e suspeitar que alguém estivesse a falar de mim, sobretudo quando ouvia uma ou outra gargalhada, mas pelo menos sentia.-me mais protegido.
Em Novembro de 91, deixei de frequentar o bar do barco. A minha figura magra e amargurada não deve ter passado despercebida a um grupo de foliões que animava as passagens de barco entre garrafas de cervejas e comentários jocosos às empregadas. Um dia, estava nas escadas, à espera da minha vez para descer para junto da porta de saída, quando ouvi: “ponham-se na bicha!” Alguém respondeu: “Bicha não, é homossex que se diz agora”. Fiquei paralisado. Obviamente pensei que tudo teria a ver comigo. Reconheci-lhes as vozes e esperei pelo pior. Foi então que um perguntou: “Mas afinal a bicha está à esquerda ou à direita?” Nesse momento, julguei que dezenas de barreirenses iam olhar para mim como uma bicha.
Aos poucos, todo e qualquer sorriso me perturbava. O empregado do café da estação ria-se para o colega, estava a rir de mim. Alguém sussurrava perto de mim, estava a comentar qualquer coisa a meu respeito. Uma gargalhada em tom mais alto, atrás das minhas costas, tinha um efeito devastador.
O bar já não era seguro. Agora, já não era só o espaço dos assentos que me metia medo. A cena passada na escada do barco intimidara-me tanto em relação aos habitués do bar que nunca mais tive coragem de lá entrar.
No inverno de 91/92, passei a frequentar exclusivamente a varanda do barco, estivesse frio ou chuviscasse. Passava em passo acelerado pelo salão da primeira classe, não olhava para ninguém, abria rápidamente a porta e sentava-me nos bancos da varanda. Caso estivessem ocupados, virava as costas e ía de olhos postos no rio, tentando esquecer a presença de pessoas à minha beira.
No emprego, qualquer pessoa, qualquer colega que por qualquer motivo se postasse à minha frente a conversar sobre o que quer que fosse, perturbava-me. Até que um dia, ouvi um dos meus colegas mais próximos comentar baixinho: “este gajo tem de consultar rápidamente um psiquiatra”.
Em Março, já não aguentava mais. Continuava a trabalhar com regularidade mas o percurso casa-emprego e emprego-casa era um pesadelo. Falei pela primeira vez à minha mulher em consultar um psiquiatra. Ela consultou o grosso volume das páginas amarelas e apontou o dedo sobre o nome de um médico ao calhas.
O consultório dele era uma reconstituição relativamente bem conseguida do que deveria ter sido o consultório de Freud em Viena. Era revestido de madeira, com bibelots cuidadosamente escolhidos e um relógio de pé onde eu mirava o tempo que me restava dos 45 minutos da consulta. O consultório não tinha sala de espera. Eu ía exactamente à hora, tocava na campainha e entrava como se estivesse a entrar para um refúgio, a mão do médico impelindo-me carinhosamente para dentro.
Depois, deitava-me numa espécie de divã incaracterístico e ficava a olhar para o tecto. Lembro-me que o tecto por cima do divã era uma placa metálica com aqueles buraquinhos a servir de respiradouros. Fazia-se um silêncio muito embaraçante até que ouvia a voz dele, sentado num cadeirão por trás de mim: “Em que está a pensar?” A minha resposta era quase sempre a mesma: “Estou a pensar que vim a correr e cheguei aqui atrasado”.
Era verdade. Como a consulta era sempre às 9h e eu vinha do Barreiro, o mais habitual era chegar às 9h25 ou 9h30. Pouco lhe importava a ele. Mandava-me deitar no divã e acabava a sessão imperetrivelmente às 9h45.
Por cada 45 minutos por semana gastava cinco contos. Obviamente, em breve comecei a questionar a utilidade daqueles cinco contos. Em duas ou três sessões contei tudo o que tinha a contar. Cada vez era mais difícil iniciar a conversação e às vezes esta começava acerca de temas tão odiotas como o facto de não ser pontual. Aborreci-me e um dia, não pus lá mais os pés.
Nesse inverno, folgava muitas vezes durante a semana. Nesses dias, não tinha mais coragem para sair às ruas. Fechava-me em casa e deixei de ir almoçar fora. Fazia arroz branco com bife de perú e fazia também o meu proprio café. Não frequentava cafés nem supermercados e começava a desconfiar dos sorrisos dos vizinhos.
Como já não conseguia percorrer as ruas da cidade e o próprio percurso barco-casa e casa-barco se havia transformado num horrível sofrimento, comecei a folhear as secções de vendas de casas para procurar uma casa fora dali, de preferência na Caparica, junto ao mar.
O percurso casa-barco era assim: primeiro tinha de enfrentar as janelas de rés-do chão da vizinhança e aí poderia surgir algum rosto sorridente que eu teria de ignorar. Deixei de olhar para os lados. Se houvesse um grupo de rapazes a fazer ruído do outro lado da praceta, eu , como muito simplesmente não os conseguia enfrentar, não olhava para eles.
Depois, tinha de passar em frente do supermercado onde deixara de ir por receio de ser identificado. E o percurso de uns 10 a 15 minutos até ao barco eram uma sucessão de lojas, cafés e tabernas que constituíam um suplício para mim. Se numa determinada taberna, não estivesse ninguém à porta, conseguia passar razoavelmente. Se, no entanto, ali estivessem três ou quatro homens a falar uns com os outros, eu passava atemorizado.
Em Agosto, em férias no Algarve, tudo se passou aparentemente na normalidade. O que a minha mulher não sabia nem os meus pais, era o grau de dificuldade com que eu me sentava numa esplanada onde tivesse rostos à minha frente ou a tortura que representava o acto banal de descer as escadas e entrar no bar do prédio.
Durante um mês, não frequentei a piscina do edifício apesar de esta estar mesmo ao lado do apartamento. Passava em frente à recepção em passo acelerado e não cumprimentava ninguém.
Em Setembro de 92, sentia-me já cercado por tudo e todos. Não me conseguia concentrar a escrever na sala de redacção porque parecia que todos olhavam para mim, era doloroso frequentar o autocarro onde não me podia sentar à frente de ninguém e a viagem de barco era um tormento. Nessa altura, pela primeira vez, pedi ajuda aos meus pais.
Até que, inevitavelmente, o alastramento impiedoso da doença chocou de frente com o desempenho profissional. No dia em que tinha de partir para mais uma reportagem, uma viagem nocturna de barco em Peniche combinada há semanas, não fui capaz. “O que é que se passa?”, perguntou atónito o editor. “Não sei, não sei...”, balbuciei, um esforço tremendo para reprimir as lágrimas. “Parece uma angústia muito grande, não é?”, perguntou. “Sim, sim...”, respondi, a mão na testa, tentando afogar o que era já o início de uma futura depressão. “Vá, vamos almoçar que isso passa”. Não passou.
Desmachei-me a chorar num dia em que me mandaram para uma conferência de imprensa e da qual tive de fugir porque muito simplesmente não conseguia lá estar. Estar rodeado pelos outros era aflitivo mas ter de enfrentar uma mesa de pessoas sentadas à minha frente era ainda pior.
Pela primeira vez, vários colegas meus viram-me a chorar. Vi-os cochichar ao longe, alguns com a boca aberta de espanto. “Não consigo estar aqui”, dizia ao meu editor, “sinto que estou a incomodar as outras pessoas”. Ele respondia: “Nuno, isso é tudo da tua cabeça, aposto contigo em como a maioria das pessoas nesta sala nem sabe o que tu tens”.
Durante um mês não saí da redacção. Só fazia trabalhos com base em telexs e tremia aterrorizado sempre que se colocava a possibilidade de me mandarem a qualquer lado. Nessa altura, não conseguia olhar nem cumprimentar os colegas que se sentavam na secção ao lado, mal saía do meu lugar, não conseguia subir ao primeiro andar onde se encontram os gabinetes da direcção e mal conseguia entrar no refeitório. Comer perante toda aquela gente era um martírio, sobretudo se de repente alguém se sentasse à minha frente.
Nessa altura, frequentei o meu segundo psiquiatra. Era um homem sensato e barbudo que me ouviu durante alguns minutos para me dizer que eu era um livro aberto. “Nuno, você para mim é como um livro aberto”. Eu estava desesperado e aceitava qualquer comentário. Queria saber o que se passava comigo e que me disessem de uma vez por todas o que eu tinha. Pela primeira vez, alguém me disse o que eu sofria. “Você tem uma agorafobia”. Saí do consultório na mesma, com a mesma dificuldade em entrar dentro do autocarro.
Mas nesse dia cheguei a casa e consultei uma enciclopedia na palavra fobia e descobri alguma coisa. Agorafobia é o medo de andar em público, de se expor aos outros, de atravessar praças e ruas expostas, de passar em frente a esplanadas. Coincidia em grande parte com o que eu sentia.
Ao mudar de local de residência, eu pensava que todos os meus medos desapareceriam como num ápice mas, bem ao contrário, o medo espalhou-se como uma mancha de óleo e tudo na Caparica se repetiu. Apesar de estar agora a viver numa rua nova, não conseguia ir à mercearia ou aos cafés da rua, antes de saír de casa olhava pela janela para ver se estava alguém no passeio a conversar e saía exactamente dez minutos antes da hora do autocarro. Isto para evitar ter de ficar à espera na paragem de autocarro, onde a presença das outras pessoas me era quase insuportável. Nos primeiros tempos da Caparica, só conheci o percurso casa-autocarro. Aventurei-me uma vez pela Rua dos Pescadores e achei que uma empregada de um estabelecimento que chamava outro colega de uma loja em frente se estava a meter comigo.
Os anti-depressivos que o psiquiatra me receitara tardavam a fazer os seus efeitos enquanto eu me sentia cada vez mais bloqueado. Pedi para gozar algumas folgas que tinha em atraso mas o sentimento de não conseguir saír de casa só tendia a deprimir-me mais. Naquele Inverno, era-me difícil fazer a viagem de regresso à Caparica de autocarro. Descia até à baixa e apanhava o barco da Transtejo que transporta carros do Cais do Sodré até Cacilhas. Escolhia esse barco porque como não conseguia enfrentar as pessoas, naquele barco podia vir ao ar livre e em quase escuridão.
Chegado a Cacilhas, muitas vezes apanhava um taxi para a Caparica para fugir ao autocarro e às pessoas. Também nos taxis, passei a ter problemas: Uma das inovações em alguns taxis, tem sido o espelho retrovisor comprido, que abarca toda a superfície do banco traseiro. Sempre que apanhava um desses taxis, fazia os possíveis por não olhar para o espelho, onde o rosto sereno do taxista me aparecia como uma tremenda ameaça.
Um colega cuja esposa é psicóloga aconselhou-me um psicólogo especializado em agorafobia. “Livra-te dos remédios”, dizia, “isso só te vai trazer dependência”. Concordei. Não sentia qualquer melhoria com o anti-depressivo e resolvi experimentar a psico-terapia do psicólogo.
Era um homem alto, novo, barba rala, simpático. Ainda hoje recordo o seu olhar sugestivo. Quando me via deprimido, todo ele parecia encolher-se numa expressão de sofrimento. Quando, por qualquer razão, eu aparecia mais satisfeito, todo ele se abria num sorriso que lhe fazia brilhar os olhos. “Que bom, folgo muito, para béns”, dizia, apertando-me a mão.
No primeiro dia, num breve e simples questionário académico, concluiu que eu não sofria de agorafobia. Que sim, que havia sintomas semelhantes mas eu sofria, isso sim, de fobia social. “Você tem medo de andar em público, é verdade, mas por medo dos outros, não é um medo irracional como o do agoráfobo, você tem medo do que digam de si ou que olhem para si”. Fiz que sim com a cabeça. Estava tão desesperado que concordaria com qualquer diagnóstico. “E de quanto tempo de terapia vou precisar para ficar bom?”. Respondeu: “Em três meses, você vai conseguir enfrentar melhor os outros”.
Em todas as sessões semanais, levava uma espécie de trabalho de casa, um papel em que anotava as situações que enfrentava e em que tentava quantificar através de números a ansiedade que sentia. Os primeiros progressos deram-se no trabalho. Comecei a esforçar-me por cumprimentar quem trabalhava a meu lado, o psicólogo incentivou-me a lutar pelo lugar a que eu aspirava há muito e sentia-me relativamente melhor no refeitório. Mas eram ganhos pequenos e que uma frase, suspirada perto dos meus ouvidos ou um olhar aparentemente mais trocista deitava por baixo.
Nesses três meses, consegui a custo levar a cabo algumas reportagens. Numa delas, convencido de que a melhora também passava por aí, meti-me num camião TIR até à Noruega para registar o modo de vida dos camionistas errantes. Mas tinha dificuldade em me sentar em restaurantes, em suportar olhares e comentários e toda a viagem se tornou um inglório combate contra a fobia. Parecia que por mais que eu fizesse, por mais que eu batalhasse, ela me vencia. Sempre, irremediavelmente, pensava eu na altura.
Em Janeiro de 1993, meti uma semana de folgas em atraso. Telefonei ao meu editor a explicar-lhe que me sentia pior e que queria ficar em casa. Cozinhava em casa e dava grandes passeios pela praia sob o sol de Inverno e junto a bandos de gaivotas que habitam os areais de São João. Chegava à praia e virava para a zona deserta de S. João. Por vezes, encontrava um ou outro pescador ou um pequeno grupo de surfistas mas mais nada. Quando não ía para a praia deixava-me ficar horas na cama, as persianas fechadas, ouvindo as vozes das pessoas que atravessavam a rua ou que telefonavam na cabine em frente a minha casa.
No fim dessa semana, fui consultar um novo psiquiatra, o mais cotado de todos os que haviam citado ao meu pai. Lembro-me que vagueei todo o tempo pela cidade até quase à hora da consulta porque simplesmente não conseguia estar em lado nenhum. Quando finalmente entrei no consultório e me disseram que a consulta estava atrasada, pensei ficar ali em pé para não enfrentar os outros na sala de espera. Na altura, eu considerava muito pouco ético que um doente de psiquiatria tivesse de estar na mesma sala de espera dos doentes de medicina geral ou cardiologia, por exemplo. Nesse dia, um casal sentado à minha frente percebeu que eu estava muito perturbado.
“Tem desejo de morrer, sente que gostaria de desaparecer?”, perguntava-me o psiquiatra com a voz pausada e segura dos catedráticos. Tinha um olhar grave, de gavião. Raramente sorria. “Não”, respondi choramingando, “sou demasiado cobarde para me suicidar”.
Quando a semana de folga passou, eu percebi que teria de obrigatoriamente de regressar ao trabalho. Não havia hipótese de me esconder mais. O médico receitara-me um anti-depressivo que me fazia sentir zonzo, suado e de andar cambaleante. Meti-me a custo na camionete que me despejou no Campo Pequeno.
Senti-me perdido. Depois de uma semana fechado em casa, todas as pessoas me pareciam sarcásticas e ameaçadoras. Deambulei aterrorizado até Entrecampos. Por momentos, julguei ainda ser capaz de me arrastar até ao jornal. Nunca me passara pela cabeça que um dia me veria impossibilitado de ir trabalhar. Subi então a Avenida Estados Unidos da América e telefonei à minha mulher. “Vem ter comigo. Sinto-me perdido”, dizia a chorar. “Tem calma”, respondeu, “onde é que tu estás? Mete-te no metro e vai ter ao Cais do Sodré que eu vou lá ter contigo”. Disse que sim. Agarrava-me a ela como a minha tábua de salvação. Era a única luz, uma trémula vela a tentar manter-se acesa numa noite escura e ventosa.
Lembro-me que ainda telefonei para o jornal. Foi uma chamada caótica, balbuciava entre as lágrimas que me escorriam cara abaixo. “Tens de olhar em frente”, dizia-me a colega que primeiro atendeu o telefone. “Vou ser despedido”, disse ao meu editor. Perseguia-me a ideia agora absurda mas que então me parecia real e absoluta de que se faltasse ao trabalho acabaria por ser despedido.
Conversei com a minha mulher à beira do Tejo, numas pedras de onde podia ver os cacilheiros imersos em neblina a atravessarem o rio vagarosamente. A vida, o bulício da cidade, continuava, apesar de eu me sentir perdido e derrotado, sem quaisquer perspectivas de futuro.
Os meus pais vieram-me buscar de carro num dia cinzento de Janeiro. Eu não podia continuar fechado e sózinho naquela casa o dia inteiro e por isso iria com eles para Aveiro.
Durante dois meses praticamente não saí de casa dos meus pais, a não ser para acompanhar o meu pai ao café a seguir ao almoço. Como sabia da minha dificuldade em enfrentar as outras pessoas, o meu pai fazia questão que tomassemos a bica num café da rua. Não é difícil de imaginar o quanto me custava acompanha-lo e sentar-me numa mesa no meio daquele caleidoscópio de caras que pareciam viradas todas para mim.
Um dos remédios que o psiquiatra me receitara, Asterfenazine, provocava-me umas reacções secundárias horríveis. Acordava de madrugada por volta das 3h00 da manhã sem conseguir dormir mais e numa excitação que me fazia levantar do quarto e descer e subir as escadas de casa dos meus pais. Conseguia ouvir todos os dias os primeiros ruídos da rua, os primeiros carros, as primeiras vozes, sempre acordado.
A partir de determinada altura, além das insónias insuportáveis, comecei a sentir uma excitação incrível nos braços. Era como se tivesse ácido nos braços. Mudava de posição, levantava-me da cama, pulava, mas aquela horrível sensação permanecia. Um dia desatei a chorar. Não aguentava mais, queria que tirassem aquela horrível sensação dos braços. A minha mãe pegou-me na cabeça e afagou-me o cabelo como já não fazia há muitos, muitos anos.
Vim a Lisboa ao psiquiatra para tentar resolver o problema. Ele achou que eu não me estava a dar bem com o anti-depressivo, tirou-mo, receitou-me um neurolético e manteve-me o Asterfenazine. Nesse dia, deixei de tomar o anti-depressivo e tomei o neurolético. Acordei às quatro da manhã com uma excitação tal que tive de pular da cama e passar o resto da noite a andar para trás e para diante. Foi concerteza um dos piores momentos da minha vida e não desejo semelhante experiência a ninguém.
Ao fim de dois meses, estava como no ponto de partida. A minha situação não só não melhorara, como a qualquer momento me desmanchava a chorar. Aos fins de semana, a minha mulher vinha de Lisboa, de comboio, com o meu filho mais velho, para me visitar. As despedidas, na estação ferroviária de Aveiro, eram como que um murro no estômago. Tentava controlar-me para não chorar quando os via dizerem-me adeus da janela da carruagem.
Em Março, os meus pais perguntaram-me se eu não queria ir a uma consulta a um médico de medicina geral que já ajudara a família inteira. Nessa altura, o arrastar da situação estava a desesperar os meus pais. Eu disse que sim. Não tinha nada a perder.
O médico, em Coimbra, disse que a minha doença tinha solução e que se eu quisesse me aconselhava um psiquiatra seu amigo e colega. Como eu respondi que sim, ele saíu da sala para fazer um telefonema e daí a cinco minutos mandou-me estar no dia seguinte no consultório do colega.
Lembro-me que a primeira coisa que o psiquiatra fez foi olhar para os remédios que eu estava a tomar e abanar a cabeça em sinal de descontentamento. Disse que eu tinha de ser imediatamente internado por um período nunca menor do que 15 dias.
A consulta foi a uma sexta-feira e não havia vagas nas clínicas particulares de Coimbra. O médico propôs que, para não se perder tempo, enquanto não se arranjasse um quarto numa clínica, eu fosse internado na secção de psiquiatria dos Hospitais da Universidade de Coimbra.
Meteram-me num quarto onde havia apenas mais um internado. Era um varredor de ruas de uma aldeia perto da Figueira da Foz. Falava com uma voz arrastada e olhava para mim com dois grandes olhos abertos. Deitava-se e virava-se para mim, a olhar, simplesmente a olhar. Quando, pela primeira vez, viu o enfermeiro espetar-me a agulha do soro para receber anti-depressivo, comentou: “Também já levei soro”. Achei que era uma óptima ocasião para entabular conversa. “Ah sim, quando?” Respondeu: “Quando me suicidei”. A conversa ficou por aí.
A rotina no corredor da psiquiatria era marcada pelas horas das refeições. Tinhamos de nos levantar e deslocar até ao carrinho que uma empregada trazia. Pegavamos no nosso tabuleiro e comíamos de frente uns para os outros. Logo na minha primeira refeição, o meu companheiro de quarto acenou-me e chamou-me para ao pé dele como um velho colega ou amigo de infância.
Lembro-me perfeitamente que a minha mulher e o meu pai se despediram de mim pouco tempo antes de servirem o jantar. Ali jantava-se às 18h30. Comi frango com esparguete. A maioria dos doentes comia silenciosamente, imersos nos seus pequenos dramas pessoais. Havia um, no entanto, que falava pelos outros todos e parecia um velho habitué. Uma vez pude ouvir a sua conversa para uma pequena plateia de sonâmbulos ambulantes. “Eh pa, já vistes se tu te matas, o que vai ser dos teus amigos e da tua família, tens de pensar nisso, pa, tens de pensar nisso, vais deixa-los tristes pa”.
Ali, na secção de psiquiatria, não havia qualquer limitação de visitas ou de saídas. De manhã, o meu companheiro de quarto, que já estava ali há um mês, vestia o seu blusão de ganga e ia até ao café mais proximo. Mais tarde, apercebi-me que num café ali perto havia uma mesa praticamente reservada para os doentes de psiquiatria.
Os que não saíam, passavam os dias no corredor, a andar para trás e para a frente. Em breve, tornei-me mais um, a deambular taciturno, de robe até aos pés.
Ao terceiro dia, pegaram em mim e levaram-me para uma clínica na rua da Sofia. Digo pegaram porque não me lembro de nada. Estava tão imerso no torpor dos medicamentos que não tenho memória de nada do que se passou. Na clínica, permaneci imerso num nebulento estado de graça produzido pelas injecções diárias de um frascalhão de anti-depressivo diluído em soro. De vez em quando recebia chamadas de outro mundo. Eram colegas meus que tinham sabido que eu estava na clínica e me telefonavam. Recordo-me que se ouvia sempre o matraquear dos teclados dos computadores como fundo. Sentia-me tão longe e tão protegido, ali naquele abençoado quarto da clínica que não tinha quaisquer saudades.
Todos os dias entrava-me pelo quarto dentro uma freira idosa que me cumprimentava com um “Bom dia, dormiu bem?”.
O primeiro dia que saí da clínica, lembro-me que desci as escadas com os meus pais e os segui, cambaleante pela Rua da Sofia afogada em gente que todos os dias a cruza, de trás para a frente. A luz intensa ofuscava-me e obrigava-me a fechar os olhos.
Estabeleci um plano para a minha recuperação. Como a estadia em casa dos meus pais durante dois meses me encerrara ainda mais na minha fobia, eu tinha era de passar o dia na rua e de preferência em locais públicos onde me visse rodeado de gente. Assim, durante praticamente todo o mês de Abril de 1993 apanhei diariamente o comboio regional entre Aveiro e Coimbra e passava os meus dias a saltar de café em café. Quando conseguia permanecer dez minutos ou um quarto de hora num café sem me perturbar e me ver obrigado a fugir para a rua, era uma pequena vitória que alcançava.
Havia cafés melhores e cafés mais difíceis. O café Santa Cruz, imerso numa penumbra discreta e com as mesas e cadeiras viradas para a porta, era o mais fácil. Onde quer que me sentasse, tinha à minha frente as costas das outras pessoas. Pelo contrário, no café Internacional, junto à Estação de Coimbra A, conseguia permanecer muito pouco tempo. O balcão onde se moviam os empregados estava virado para os clientes e as mesas tinham quatro cadeiras, o que significava que de um momento para o outro na mesa à minha frente podia sentar-se alguém e perturbar-me. De modo que nesse café pedia invariavelmente uma bica, para demorar menos tempo e poder saír porta fora aliviado.
Comprei um passe de autocarro e escolhi uma linha que desse a volta a toda a cidade. Dei a volta a Coimbra inúmeras vezes, sentado de forma a que me tivesse de confrontar com os rostos das outras pessoas.
O psiquiatra estabelecera que no máximo no início do mês de Maio eu devia regressar ao trabalho. Para quem pensava nunca mais conseguir enfrentar o local de trabalho e os respectivos colegas, essa meta parecia completamente utópica. Estabeleceu-se que eu durante o mês de Abril faria psicoterapia intensiva com um psicologo da secção de psiquiatria do Hospital de Coimbra.
O psicologo, ajudado por uma psiquiatra, punha duas cadeiras à minha frente a que chamava cadeira A e cadeira B. A cadeira A era a cadeira do doente, a B a cadeira de como eu gostaria de ser apesar de me sentir doente. Eu era obrigado a representar os dois papeis, sentando-me em cada uma das cadeiras. No fim, sentava-me na cadeira C, onde representava o papel de uma terceira pessoa que comentava a performance das outras “duas pessoas”.
Outras vezes, o psicologo ensinava-me a não desviar o olhar, olhando em frente mas desfocando a vista, como se nada de verdadeiramente importante ali estivesse. É esse o comportamento dos suburbanos no autocarro ou no Metro. Olham em frente mas vão imersos nos seus pequenos problemas quotidianos, nem fixam o rosto de quem têm à frente.
Um dia, o psicologo pediu-me que o entrevistasse. Nessa altura, eu estava convencido que não conseguiria fazer mais entrevistas na vida. De outra vez, no gabinete do meu psiquiatra, juntaram-se vários elementos da equipa de psiquiatria do Hospital, atrás, dos lados e à minha frente, enquanto eu era obrigado a entrevistar uma pessoa desconhecida.
“Imagine que está sentado numa mesa de um café e que vem uma estranha e pede para se sentar na sua mesa porque as outras mesas estão todas ocupadas. Você tem de entabular conversa com ela”, explicava-me uma vez o psicologo enquanto entrava na sala uma psicologa sua amiga para representar o papel de estranha.
Uma manhã, conheci uma enfermeira do hospital que sofria também de fobia social. Foi-me apresentada pelo psicologo. O seu problema residia muito simplesmente no seguinte: se alguém, seu superior, olhasse para ela ou ela sentisse que alguém estava ou poderia estar a olhar para ela enquanto executava uma tarefa, ela não conseguia executa-la. Estava seriamente perturbada porque o seu problema já durava há três anos e comprometia-lhe seriamente o desempenho da sua profissão. Virei-me para ela e disse-lhe que comparado com o meu, o problema dela era muito fácil. “Você tem problemas quando o seu chefe olha para si quando está a espetar a seringa a um doente, agora eu não consigo sequer andar na rua ou sentar-me sossegado num café!”
A prova final, nesse fantástico mês de Abril de 1993, consistiu num improvisado debate que eu tive de moderar perante uma plateia de umas 25 pessoas. Primeiro, puseram-me a ler um texto de Woody Allen, o que desmanchava as pessoas à minha frente a rir e punha à prova a minha resistência ao ridículo. Depois, tive de conversar com elas sobre um tema à minha escolha. O debate foi um sucesso e as pessoas perguntavam no final ao psicologo o que é que eu tinha. Lembro-me que um rapaz se levantou da plateia e me cumprimentou como se cumprimentasse um heroi. “É que, sabe, eu também tenho fobia social”.
Regressei ao trabalho na meta proposta, Maio de 1993 mas só mais tarde, muito mais tarde, consegui dar valor ao trabalho da equipa que, juntando a utilização de medicamentos e a psicoterapia, me ajudou a recuperar.

Jorge's Place

O senhor Jorge limpa umas chávenas, de costas para o balcão onde vive barricado grande parte do dia.
- Jorge, o que é que se passa com o Julinho?
- O Julinho, o que é que aconteceu desta vez com o Julinho?
- Vai ali com um sapato amarelo e outro castanho.
- Coitado do Julinho...
O Julinho usa uns óculos com umas grande e grossas dioptrias. De Verão, anda invariavelmente de fato-treino azul e panama na cabeça. Às vezes, carrega uma toalha ao ombro. No Inverno, o passo trôpego transforma-se em passo de tartaruga. Passa a vestir um casaco castanho quase até aos pés, que arrasta pela calçada portuguesa. Vive sózinho, de uma reforma na marinha, dizem.
Noutro dia, o Julinho entrou no Café do Senhor Jorge a meio do dia. O Senhor Jorge deu-lhe uns conselhos, como a toda a gente:
- Vá até ao centro, não beba, não durma de tarde senão depois não consegue dormir à noite...
O Julinho fez hum...hum...e lá desapareceu porta fora, a pequena tartaruga problemática.
E daquela vez que o Julinho passou à porta do Café do Senhor Jorge surpreendentemente vestido a rigor, fato e gravata, o cabelo penteado para trás, um sorriso nos lábios?
- Faz-lhe bem, fá-lo sentir-se bem, comentou o Andrade, dono da mercearia fronteira ao Café do Jorge, um braço na ponta do balcão e os olhos pespegados ao pouco movimento da Avenida do Mar
- Queres ver que foi desta que o Julinho arranjou uma viúva?

2004-11-04

Estugarda-3-Benfica-0

O que todo o mundo viu foi nada mais nada menos do que a re-eleição de um criminoso de guerra. Porque é que ninguém fala dos 100 mil civis mortos numa guerra que nunca devia ter existido? E agora Palestina, já tão enfraquecida? Como vais ficar tu sem o Arafat? Isto é que me revolta. Como é que pode o Benfica jogar bem num mundo com tamanha instabilidade?

Sem tempo para pensar nisso

George Bush ganhou as eleições norte-americanas, o Yasser Arafat está a morrer mas não temos disponibilidade mental para pensar nisso neste momento. O Sport Lisboa e Benfica está prestes a entrar em campo. Silêncio que se vai cantar o fado.

2004-11-03

Abilene TX

ABILENE

de Dave Alvin (clicando no título obtem informação sobre o autor)

There’s a greyhound bus
Leavin’ the great Northwest
Takin’ her tonight
Back down south to Texas
She’s been dancing’ on tables
To pay rent and be able
To just get by and maybe stay clean.
Abilene, AbileneAbilene, Abilene.
Well her daddy’d get drunk
Then he’d hit her hard
And her mama’d lie in bed
High on pills and talkin’ to God
But like her beautiful tattoos
These old memories she can’t lose
Since she ran away at fifteen.
Abilene, Abilene
There’s a town ahead that you’ve never seen
Maybe it’s better if you get off there and try to
Forget everything
Abilene.
Starin’ out the window
At the long cold night
Ahead on the horizon
Is another string of bright lights
She’s dreamin’ of a man she’s goin’ to meet
In a bar on an Austin street
Maybe this one won’t be so mean.
Abilene, Abilene
There’s a town ahead that you’ve never seen
And maybe it’s better if you get off there and try to
Forget everythingAbilene.
In a Texas bar there’s a man sittin’ alone
Thinkin’ of a girl he swore he’d wait there for
But he’s drinkin’ beers and he’s feelin’ old
Rememberin’ every lie he’s told‘
Til he changes his mind and he leaves.
Abilene, Abilene
There’s a town ahead that you’ve never seen
Maybe it’s better if you get off there and try to
Forget everything Abilene, AbileneOh Abilene, Abilene.

2004-11-02

Fragilidades

- Importas-te de falar mais baixo?
- Ninguém nos estás a ouvir.
- Aquela mulher, não é essa, é aquela ali...porra, não olhes assim com esses olhos abertos...está a ver agora?
- Eu estou-me cagando para a mulher.
-Mas não estou eu. Ouve o que eu te digo, tens de moderar...
- Moderar o quê?
- Moderar tudo. Falas de mais, dizes coisas a mais, expões-te de mais. Ninguém se comporta assim hoje em dia...
- Deste em psicóloga agora? Quanto é que é a consulta?
- Não é isso. Tu és frágil ou sentes-te frágil e sentes necessidade de pôr tudo cá para fora, as inseguranças, os medos, as dúvidas, as incertezas...
- Estou a ser sincero.
-Ok, mas a maioria das pessoas não faz isso, ao mostrares as tuas fraquezas estás a dar pontos aos outros. -Ao adversário...
-Exactamente, vês como me entendeste, ao adversário.
-Mas eu não tenho adversários, eu quero ser amigo de toda a gente, quero amar e perdoar. Olha aquela mulher, vou-lhe dizer adeus e sorrir, ela vai perceber que eu gosto dela.
-Pára. Ela vai achar que tu és maluco... fazes isso e eu vou-me embora.
- Não vás, sabes como preciso de ti.
- És tão imaturo, meu Deus. Então se não queres que eu vá embora, aprende algumas regras, não dês trunfos aos outros. Porque é que foste contar a toda a gente que andas a fazer terapia?
-Porque é verdade, porra, ando a fazer terapia.
- Mas as outras pessoas não precisam de saber. Os outros escondem as cartas e tu jogas tudo em cima da mesa.
- É a minha maneira de ser.
- Pois é mas passas a ser um livro aberto para toda a gente.
-Leiam o meu livro, também não lêem grande porcaria.
-Mas já te disse, não é assim que a sociedade funciona hoje em dia. Muitas das pessoas neste bar devem ter problemas semelhantes aos teus ou mais graves mas não andam aí a apregoar pelas ruas.
- Mas deviam, deviam abrir as janelas e deitar tudo cá para fora.
-Mas íam sentir-se mais frágeis, com vergonha, despidas, percebes.
-Eu não me sinto despido.
-Era uma imagem.
- Eu sei, posso sentir-me frágil mas não sou burro.
-És um bocado simple mind às vezes.
- Só porque gosto de dizer a verdade e ser honesto?
-Ser honesto não significa que tenhas de ser ingénuo, tu és muito ingénuo às vezes. Tens de saber resguardar-te mais.
- Eu não gosto de silêncios inteligentes.
- Então continua a mandar tudo cá para fora.
- Aquela mulher está a gostar da nossa conversa.
-Pudera, tu nem o tom de voz consegues moderar.
-Estou-me a cagar para o tom de voz. Vou sorrir para ela, vais ver como ela me vai retribuir o sorriso.
-Com essa pinta de maluco? Ao menos podias ter feito a barba e penteado o cabelo. Lavaste os dentes ao menos?
-Agora estás-me a ofender. Olha, vê como eu sorrio para a mulher.
-Oh não...não quero ver.
- Olá minha senh...
-Vês?
-A p...! Virou-me a cara!
- Não eras tu que querias ser amigo de toda a gente, amar e perdoar?
- Eu tentei.
-És tão infantil.
- Aquela mulher...está perdoada...coitada, deve ter um problema mais grave que o meu, só que o está a guardar para si, para não se expor perante os outros, para não exibir a nudez da sua fragilidade aos meus olhos de abutre observador. A sociedade hoje em dia é assim, as pessoas escondem-se umas das outras.
-Aprendeste depressa.

2004-11-01



In my own mind
de Lylle Lovett

I get up in the morning
I drink a cup of coffee
I look out of the window
I try to get it started
I turn it all over
Plow it all under
I plant 'em in the springtime
Pick 'em in the summer
I live in my own mind
Ain't nothin but a good time
No rain just the sunshine
Out here in my own mind
I live where I can breathe
Ain't nothin but a cool breeze
Nobody that it won't please
Out here where I can breathe
Randy and Danny Ray
They'll show back up any day
That's one thing you can count on
But sometime's they'll be long gone
I'd rather be hunting
Hooked on fishing
I read it on their t-shirts
And if you don't believe it
I live in my own mind
Ain't nothin but a good time
No rain just the sunshine
Out here in my own mind
I live where I can breathe
Ain't nothin but a cool breeze
Nobody that it won't please
Out here where I can breathe
Hardwood floor creakin'
Bedroom door squeakin'
She's standing in the kitchen
I thought she was still sleepin'
Kiss her on the forehead
Asked her how she slept
She says, 'honey it's so early,
We probably shouldn't speak yet' Posted by Hello

Nininha nunca viu o mar

“Cê não tem medo? Oxente, que faz um português num fim do mundo desses?”, pergunta a “nêguinha” Nininha, aliás, Oresmilda, secretária da Prefeitura de Orocó, Pernambuco, em pleno “polígono da maconha”. Orocó é uma cidade de uma rua só no semiárido nordestino. Ela e a maioria dos seus habitantes nunca viu o mar “Hum, hum”, diz Nininha. Abana a cabeça e ri, os dentes muito brancos. O mar de Nininha é o Rio São Francisco, que percorre a região.
Orocó, em plena BR-428, é terra de bandido. A BR desce por uma região desolada, semi-deserta do sertão do sul do Pernambuco, cactos espetados no ar como braços, a terra vermelha e seca, as árvores retorcidas pedindo a água que não vem. Viajar ali, de carro particular, camião ou de autocarro de passageiros, pode ser um sobressalto. Sempre que o “ónibus” pára ou para um polícia militar inspeccionar a viatura ou por causa das frequentes “lombadas”, as cabeças esticam-se à espera de tudo. “Isso aqui é perigoso demais, eles assaltam sua viatura, pegam tudo e lhe largam no mato. Se você fala muito, lhe matam. É muito perigoso”. Ali, a mais de 600 quilometros a sul do Recife, percebe-se que as coisas vão piorando e deteriorando a partir do momento em que a camioneta deixa a região relativamente pacata do alto sertão e desce em direcção ao polígono da “maconha” (marijuana), a região junto ao Rio São Francisco, domínio dos “maconheiros” (produtores e distribuidores de “maconha”).
Avisos não faltam: “Não confie em ninguém” ou “bote seu dinheiro na bunda”. A cidade de Floresta é alvo de especiais cuidados. “Ô gente, um dia eu fui lá carregar e me receberam de arma na mão. É muito perigoso”, explica o camionista Paulo. Tudo porque além de terra de maconheiro, Floresta vive há muito uma guerra fratricida entre duas famílias rivais. “É até morrer o último”.
As pequenas cidades ali no sul do Pernambuco são povoados minúsculos no semideserto, onde cada forasteiro é observado à distância até derreter a desconfiança e ser recebido com uma hospitalidade quase embaraçante. “O que comem lá em Portugal?”, “Portugal é bonito, não é?”, “me leva para Portugal”. Logo, logo, começam as imitações do sotaque português. “Ele não diz Brásil, diz Bresil”...
Para conseguir um transporte para onde quer que seja, é preciso ir à prefeitura local e pedir por favor ao prefeito que disponibilize uma viatura. “Hoje não vai dar não, o melhor é você sentar e ficar aqui conversando com a gente. Diz aí: as mulheres portuguesas, como são?” A prefeitura de Orocó parece um caixote. Somos levados a conhecer uma a uma, as salas, as secretárias, o posto de saúde. De repente, alguém coloca uns colchões na sala da secretária do prefeito. “Ô gente, vamos tirar isso daí, está aqui um jornalista de Por-tu-gal”. Em frente à prefeitura, junto aos bancos onde à noitinha se juntam os namorados, fica a minúscula dependência do Banco do Brasil fechada depois de ter sido assaltada duas vezes em 15 dias. Para levantar dinheiro, é preciso conseguir uma boleia até 32 quilometros a sul, para a cidade de Santa Maria, onde o Banco fica em frente a um quartel de polícias militares de mão no coldre. No Banco, basta trazer uma moeda no bolso para a porta não abrir e um polícia aparecer, de mão no revolver.
À noite, os camiões zumbem na pequena tira de asfalto que rasga o sertão, esperando não ter problemas. “Ontem de madrugada, tentaram assaltar um camião na pista. Aí, o cara não parou, eles atiraram no camião”. O dono do hotel local leva-nos na sua moto até ao clube local e fica espantado quando explicamos que queremos lá ficar e voltar a pé. “Não, cê volta comigo, ninguém lhe conhece aqui”.
Insegurança à parte, todo o Pernambuco é uma festa, sobretudo em Junho, que se comemora o São João durante praticamente um mês de forró, muita cerveja, cachaça e alegria. Bandas de forró enchem a programação das festas de Caruarú, a capital do forró.
No autocarro escolar de Orocó, que nos deu uma “carona” para Petrolina, na fronteira com o Estado da Bahia, ninguém pára quieto. “Mais som! Bota forró!” Só ao fim de duas horas de viagem, as pernambucanas parecem sossegar ouvindo duplas sertanejas: Leandro e Leonardo, Xitãozinho e Xororo, Zeze Di Camargo e Luciano. É sol de pouca dura.
“Esse homem é o homem que toda a mulher tentou chamar: Xananana, úúúúúú...”

P.S. Do outro lado do Rio São Francisco, em frente a Petrolina, fica Juazeiro, terra natal da Ivete Sangalo e que já é Estado da Bahia. A Nininha? Ficou furiosa por eu ter escrito que ela nunca tinha visto o mar. A Nininha queria ver o mar. Quem sabe já não viu o mar?
Uma vez, no GNT, um jornalista perguntou a uma velhinha sertaneja, daquelas figuras mirradas, secas e queimadas pelo calor impiedoso do sertão: "O que a senhora acha que é maior, o mar ou o sertão? E ela respondeu prontamente: "o sertão".

Ainda a Ivete

Depois do sucesso que foi a sua passagem recente pelo Rock In Rio Lisboa, com cerca de 80 mil pessoas a levarem-na à emoção e às lágrimas, Ivete Sangalo regressou agora a Portugal para capitalizar esse êxito. Na noite de sábado, durante cerca de duas horas, no Pavilhão Atlântico, em Lisboa, a cantora baiana trouxe à capital o seu espectáculo “Ivete 10 anos”.
Quem já conhecesse o DVD “MTV ao Vivo”, gravado a 21 de Dezembro de 2003 no Estádio Fonte Nova, em Salvador, não terá ficado surpreendido com o que viu e ouviu. Perante um Pavilhão Atlântico antecipadamente rendido, cheio de bandeiras portuguesas e brasileiras, pronto a pular e a dançar, no que acaba por se assemelhar a uma gigantesca aula de aeróbica, Ivete chegou, cantou, dançou e convenceu.
O alinhamento das canções foi praticamente o mesmo do disponível no DVD, com a certeza de que o som deste é infinitamente melhor que o abafado e empastelado som do Pavilhão Atlântico. A plateia foi um mar de braços ao som de “Eva”, “Alô Paixão”, “Beleza Rara”, “De ladinho”, “Arerê” e, claro, “Chão da Praça”, que toda gente reconhece quando Ivete ergue o braço e canta “Poooeira...”
Os momentos mais intimistas e talvez os melhores, foram, obviamente quando Ivete largou o axê, os ritmos latino-americanos e o reggae e cantou “Se eu não te amasse tanto assim” e “A lua que eu te dei”. No final, os fãs do Pavilhão Atlântico-o seleccionador Luís Filipe Scolari incluído- tiveram direito a uma segunda sessão de “Chão da Praça” e Ivete fez aquilo que sempre a caracteriza: A baiana de Juazeiro agradeceu um a um aos presentes, leu todos os cartazes escritos em seu louvor na primeira fila e voltou a ser rainha no afecto com que trata os fãs. “Gente, muito obrigada...”


O melhor
A afectividade e o calor humano da baiana do vozeirão. Ivete Sangalo mantem com os fãs uma relação de grande proximidade
O pior
O som do Pavilhão Atlântico, abafado e empastelado