estradas perdidas

Atrás de casa, encoberta por tufos de erva daninha, silvas e bidões abandonados, o comboio de janelas iluminadas vinha das Quintãs e silvou depois do túnel em curva, em direcção a Aveiro. Ali ao lado há uma estrada, a minha primeira estrada. Mulheres e homens cruzam-na impelindo teimosamente os pedais das bicicletas. Junto à vitrine de um pronto-a-vestir lê-se "Modas Katita". De uma taberna, saem dois homens que se dirigem para duas Famel-Zundapp. Estrada perdida.

2004-07-26

A Arrábida a arder

Vale das Rascas, Serra da Arrábida, 19h10 de domingo, dia 25 de Julho. Uma grossa e enorme nuvem de fumo ergue-se ao virar de uma esquina, um fumo castanho e negro que tapa um sol raiado de sangue. Vira-se outra curva, passa-se a placa onde se lê "Vale das Rascas" e é o caos.
Uma parede de labaredas desce a encosta, devora dezenas de pinheiros mansos num caminhar assustador e avança em direcção à povoação.
Naquele preciso momento, não há bombeiros em Vale das Rascas - uma aldeia à beira da estrada que liga a cimenteira do Outão à estrada Azeitão-Setúbal, perto de Aldeia Grande. Há sim populares afogueados regando tudo o que podem com mangueiras pequenas e ridículas. Um rapaz sai do café junto à estrada, de mangueirita na mão, atravessa a estrada e enfrenta a parede de chamas, do outro lado, um calor intenso erguendo-se sobre a povoação indefesa.
O fogo sobe, sobe, corre e faz "fshhhhhhhh...", um barulho ensurdecedor que faz apressar os que ainda resistem a ficar. Por todo o lado, em Vale das Rascas, vê-se correr, ouve-se "vamos embora" ou "oh filha, deixa lá o carro, anda, anda..."
Um casal desaparece estrada baixo com o carro atulhado com televisor e pequena mobília. Uma mulher grita, o rosto pleno de angústia. O que tem ali à frente dos olhos não é bonito de se ver: O fogo engole tudo impelido pelo vento. Dez minutos mais tarde, depois de um carro dos bombeiros do Montijo, chegam ao local dois carros dos bombeiros da Trafaria. A situação, essa, está muito longe de estar controlada. As labaredas avançam por ali fora, num repente estão na esquina, no horizonte.
O Rui, o fotógrafo, está absorvido pela labaredas que lhe chegam ao visor da máquina fotográfica, pelo enquadramento de um homem de mangueirinha na mão, as chamas em cima, um homem de motorizada observando tudo, pronto a fugir.
Mais atrás, vejo as chamas a galgar caminho em direcção à nossa direita, à curva de onde vieramos. O carro está ali, estacionado, junto à estrada, do lado de cá. Mais um, dois minutos e o fogo chegará finalmente à viatura. Precisamos saír dali para não ficarmos em Vale das Rascas, apeados, num círculo de fogo, com populares desesperados e bombeiros.
"Rui, Rui", grito, "vamos embora, caralho, esta merda vai arder!" Caem cinzas, faúlhas, arde de um e do outro lado da estrada ou sou eu que já sonho, na minha pouca experiência de incêndios, com chamas em todo o lado? O Rui, até aí em transe fotográfico, percebe que é altura de fugir dali. Corremos, alcançamos o carro, viramos a esquina, adeus perigo, adeus Vale das Rascas.
Uma hora mais tarde, quando tentarmos regressar a Vale das Rascas,  já não é possível passar, já o fogo avançou em direcção à fábrica de cimento da Secil, a povoação cercada, as chamas ali por perto. "Está a uns 500 metros, não podemos deixar passar ninguém", diz um bombeiro.
19h45, Praia de Galapos, já evacuada pelos bombeiros. "Isto está tudo fodido, vai arder tudo e vocês é melhor basarem daqui que isto quando ele chegar a gente não sabe se o aguenta aqui", diz entre a descontracção e o stress um bombeiro de Póvoa de Santa Iria, ali a dois passos do verde azul do mar, meia dúzia de pessoas assistindo à evolução das chamas a partir do areal.
"Vocês são de onde, do "Diário de Notícias"? Ah, do Público..." O bombeiro tira a máscara branca para que o fotografem em acção. "No ano passado apareci no jornal, vamos a ver se este ano apareço também". Que praia é aquela? "Sei lá, a gente não somos de cá, ainda ontem estavamos em Castelo Branco e antes estivemos em Torres Novas, o pessoal não pára. Vamos para onde nos pedirem", diz outro.
O pequeno grupo de meia dúzia de bombeiros da Póvoa de Santa Iria discute se deve esperar na estrada pelo fogo. "Convinha fazer um reconhecimento ali em cima", diz um bombeiro mais velho. "Ele pode chegar até aqui, não pode é passar da estrada para a praia, perceberam?"
Um bombeiro mais novo propõe acção: "A gente não pode estar aqui à espera do fogo, temos que ir por aí acima e dar porrada nele. Se ficarmos aqui parados e o gajo vier com força, a gente não o aguenta".
O fumo começa a aumentar sobre as nossas cabeças. Os bombeiros, homens e mulheres, puxam a mangueira e levam-na encosta acima, desaparecendo entre a mata. Na praia, lá em baixo, algumas pessoas assistem ansiosas ao que se passa mais em cima. Um homem de telemóvel fala frenéticamente junto a um dos bares e restaurantes de praia. Os toldos de praia estão vazios. Há banhistas em motos de água à espera do apocalispe, que as labaredas desçam a serra e lhes dêem espectáculo.
20h00. "Isto é pior que uma guerra, não  há hipótese, vai arder esta merda toda". As chamas vêm aí. Ouvem-se gritos, grita-se "água". De repente, as labaredas irrompem junto à estrada que cerca a praia, endoidecidas, prontas a lamber tudo. O homem do telemóvel subiu a encosta e berra com os bombeiros. "Como é possível deixarem o fogo chegar aqui? Como? É uma vergonha!" Um bombeiro vira-se, praticamente sem tempo para mais nada do que segurar-lhe no braço e dizer: "Calma, tenha calma!" As mangueiras dos homens e mulheres da Póvoa de Santa Iria parecem insignificantes. As chamas erguem-se nos ares e assustam.
"M'bora, vamos cavar daqui!" A estrada entre Galapos e a Praia da Figueirinha está coberta de pedras que se desprenderam, o terreno fumega. Há pequenos focos de incêndio onde dantes haviam pinheiros mansos. Campistas atarantados vão deixando o parque de campismo do Outão. O fumo vai voando em direcção de Setúbal, em grossos rolos sobre o mar. Famílias assistem ao desastre ecológico, de coração apertado, a partir de um miradouro. "Mãe", pergunta uma criança, "quem é que pôs o fogo?"

2004-07-23

Na terra dos sonhos ninguém me leva a mal!

"Na Terra dos Sonhos"
de Jorge Palma

Andava eu sem ter onde cair vivo
Fui procurar abrigo nas frases estudadas do senhor doutor
Ai de mim não era nada daquilo que eu queria
Ninguém se compreendia e eu vi que a coisa ia de mal a pior
Na terra dos sonhos, podes ser quem tu és, ninguém te leva a mal
Na terra dos sonhos toda a gente trata a gente toda por igual
Na terra dos sonhos não há pó nas entrelinhas, ninguém se pode enganar
Abre bem os olhos, escuta bem o coração, se é que queres ir para lá morar
Andava eu sózinho a tremer de frio
Fui procurar calor e ternura nos braços de uma mulher
Mas esqueci-me de lhe dar também um pouco de atenção
E a minha solidão não me largou da mão nem um minuto sequer
Na terra dos sonhos, podes ser quem tu és, ninguém te leva a mal
Na terra dos sonhos toda a gente trata a gente toda por igual
Na terra dos sonhos não há pó nas entrelinhas, ninguém se pode enganar
Abre bem os olhos, escuta bem o coração, se é que queres ir para lá morar
Se queres ver o Mundo inteiro à tua altura
Tens de olhar para fora, sem esqueceres que dentro é que é o teu lugar
E se às duas por três vires que perdeste o balanço
Não penses em descanso, está ao teu alcance, tens de o reencontrar
Na terra dos sonhos, podes ser quem tu és, ninguém te leva a mal
Na terra dos sonhos toda a gente trata a gente toda por igual
Na terra dos sonhos não há pó nas entrelinhas, ninguém se pode enganar
Abre bem os olhos, escuta bem o coração, se é que queres ir para lá morar

Discos preferidos de 2004 (até agora)

Loretta Lynn-"Van Lear Rose"
The Holmes Brothers- "Simple Truths"
Ellis Hooks- "Uncomplicated"
Otis Taylor- "Double V"
J.J. Cale- "To Tulsa & Back"
Patty Griffin- "Impossible Dream"
Grey Delisle- "Graceful Ghost"
Norah Jones- "Feels Like Home"
Iron & Wine- "Our Endless Numbered Days"
Anne McCue- "Roll"
Terri Binion- "Fool"
Mindy Smith- "One Moment More"
Robin and Linda Williams- "Deeper Waters"
Laura Veirs- "Carbon Glacier"
Alecia Nugent- "Alecia Nugent"
Allison Moorer- "Duel"
Polly Paulusma- "Scissors in my pocket"
Richmond Fontaine- "Post to wire"

21th July Night Song

I'm So Lonesome I Could Cry
de Hank Williams (clicar no título para obter informação sobre o grande Hank)

Hear the lonesome whiperwill
He sounds too blue to fly
The midnight train is whining low
I’m so lonesome I could cry
I’ve never seen a night so long
When time goes crawling by
The moon just went behind a cloud
To hide it’s face and cry
Did you ever see a robin weep
When leaves begin to die
That means he’s lost the will to live
I’m so lonesome I could cry
The silence of a falling star
Lights up a purple sky
And as I wonder where you are
I’m so lonesome I could cry

2004-07-22

É só rir...

Muita gente critica de forma injusta este governo. Tenhamos a santa paciência, o governo tem dois dias e já é um milagre este país ter governo. Mas melhor do que isto é o facto de termos um governo que prometeu e promete ser divertido. Para já, para quem não votou nele, até que não me acho assim tão mal servido. Quem se lembraria de trocar as voltas a tudo e todos com a jogada magistral de colocar Teresa Caeiro na Defesa para logo a seguir a apresentar na cultura? Quem, senão esse animal, político, teria capacidade para se lembrar que seria boa ideia o ministério do Turismo vir um dia a ficar sedeado no Algarve? Este homem, este animal político, é um génio. Num país de gente cinzenta, dá-nos, devolve-nos o riso, a boa disposição e só por isso lhe deveríamos estar gratos. Santana Lopes é o nosso palhaço mor e é óptimo no que faz. Eu quero que ele continue. Ah...e à direita da suposta esquerda também parece que estamos bem servidos com...senhoras e senhores...José Sócrates, outro comediante. É só rir...

2004-07-15

14th of July night song

No Place To Fall
de Townes Van Zandt (clicar no título para obter informação sobre o autor)

If I had no place to fall
and I needed to
could I count on you
to lay me down?
I'd never tell you no lies
I don't believe it's wise
you got pretty eyes
won't you spin me 'round
I ain't much of a lover it's true
I'm here then I'm gone
and I'm forever blue
but I'm sure wanting you
Skies full of silver and gold
try to hide the sun
but it can't be done
least not for long
And if we help each other grow
while the light of day
smiles down our way
then we can't go wrong
Time, she's a fast old train
she's here then she's gone
and she won't come again
won't you take my hand
If I had no place to fall
and I needed to
could I count on you
to lay me down?


2004-07-14

Delegacias perdidas

“Rapaz, o cara veio para me matar. Eu não queria morrer”, explica Raimundo, as mãos agarradas às grades da cela, um tugúrio de três por três metros onde mal entra a luz e o calor obriga todos os detidos a usarem apenas uns calções.
Juntamente com Raimundo, na pequena delegacia de Grajaú, uma cidade perdida no centro-sul do Estado do Maranhão, Brasil, há um pouco de tudo: assaltantes de “ónibus” (autocarros de passageiros), traficantes de “maconha”, um assaltante a Banco e vários homicidas.
Chega-se a Grajaú de carro desde Imperatriz, a segunda cidade do Estado, em cerca de 200 quilometros de terra batida rasgando o mato, um trilho que lembra as imagens repetidas da Trans-Amazónica. É uma cidade cercada por reservas indígenas, um território onde impera o tráfico de “maconha”, os assaltos a autocarros de passageiros e viaturas particulares, onde os índios vendem um quilo de “maconha” a 100 escudos ou a trocam por uma garrafa de cachaça.
“Tudo isso aqui à volta”, explica Cleosnaldo Brito, o delegado local há oito meses, “é reservas controladas pela FUNAI (Fundação Nacional de Apoio ao Indio), onde a gente não pode entrar. Todo o cara que tenha problema com a polícia, seja índio ou branco, some lá para dentro e a gente não pode pegar, só a Polícia Federal”.
A minúscula delegacia reflete o contexto problemático que a envolve. É um mundo acanhado de luz filtrada, paredes sujas riscadas por graffitis, muito calor, onde os homens para se sentar têm de juntar garrafas de plástico de Coca-Cola, enchê-las e atá-las, onde das latrinas dentro das celas sai um fedor que exala e enche o espaço como uma praga, onde só alguns conseguem dormir nas redes, os outros dormem no cimento. “Só cabe três redes aqui, os outros dormem ali”. Um preso deita-se no chão e exemplifica com uma manta: “Desse jeito aí”.
Quem vê pela primeira vez a fachada anónima de mais uma delegacia miserável— onde há fita adesiva e cartão na janela do gabinete do delegado e vidros partidos nas janelas onde as portadas estão sempre fechadas apesar das grades— não imagina que ali dentro vivem 34 homens com direito a saír da cela duas vezes por semana, para dois banhos de sol de uma hora cada.
“Rapaz, isso aqui é quente demais, banheiro tem mas não sai água”, diz-nos um dos detidos, os outros todos fazendo que sim com a cabeça. Abrem a torneira do chuveiro para deixar caír um fio muito fino. “E não tem medicamentos”, queixa-se outro, “estava doente do ouvido mas ninguém me levou ao hospital. E a gente pega coceira, pega alergia por causa da humidade”. Trazem um detido índio que coça a pele à nossa frente.
Raimundo Neto de Oliveira, 32 anos, foi detido há um mês acusado de dois homicídios. Arregala muitos os olhos e agarra as grades com ambas as mãos, uma mulher nua tatuada no peito. “Rapaz, matei em minha defesa, ele me queria matar. O cara pediu para mim cuidar do galinheiro do patrão dele, aí o cara chegou bêbedo, não encontrou a chave do galinheiro, foi a minha casa dar conta da chave, com uma 28 engatilhada na mão. Eu disse que não sabia, ele disse que se não desse conta me matava”.
No dia seguinte, Raimundo foi falar com o patrão do outro e avisou-o de que se ele o voltasse a importunar, quem matava era ele. O patrão falou com o outro mas a conversa não parece ter tido efeito. “O cara tomou umas cachaças e apareceu lá de novo, dessa vez com uma “garruncha” (caçadeira). Agarrou minha esposa, ‘tava querendo derrubar ela, aí ela gritou, eu corri pela fazenda, quando cheguei a casa, o cara soltou a mulher e correu até à espingarda que estava no muro. Aí eu corri para pegar na minha, o cara atirou, falhou, tentou armar ela de novo, aí eu disparei a minha 28. O cara morreu”.
O que poucos sabiam era que Raimundo já tinha cometido outro homicídio em 1993 e resolvera a situação mudando de cidade. “Era um cara de fora...ninguém reclamou, só sumi da cidade quando todo o mundo ficou comentando...era um cara que vivia bebendo cachaça”.
Como foi? “O cara vivia me provocando sempre que bebia, aí eu planejei pegá-lo um dia. Uma noite, o cara estava me provocando de novo, eu fui à fazenda pegar um pilão, de pilar mandioca, viu? Aí o cara perguntou: “Para que é isso aí?” E eu disse : “Nada não, tem muito cachorro valente aí na rua, é para me defender de cachorro”. Aí, ele disse que não iria pagar mais bebida, me chamou de moleque. Eu fui em cima dele, o cara pegou minhas pernas e me derrubou. Eu me livrei, peguei o pilão e matei”.
Ao lado de Raimundo, com cara de menino e sorriso falsamente imberbe, está António Carlos Barros, 29 anos. Vive naquela cela com pouca luz e abafada há um ano e 8 meses. É conhecido em toda a delegacia pelos trabalhos de artesanato que produz, casinhas de um, dois, três andares, em madeira. “Matei mas foi em legítima defesa”, diz.
António Carlos, deixou a esposa numa fazenda perto de Grajaú para ir trabalhar numa cerâmica de São João de Araguaia, no Estado do Pará. “Um dia eu vim embora, cheguei a casa e soube que o cara que mora junto comigo, tinha batido na minha esposa. Eu fui simplesmente bater um papo com ele, aí o cara já veio com agressão, pegou numa faca e veio para mim. Aí eu corri, rodeei a casa, entrei, peguei a espingarda e perdi a cabeça, atirei contra ele, matei o cara”.
Sem passado criminal, António fugiu para uma cidade vizinha, Porto Franco, onde conseguiu trabalhar numa churrascaria durante dois meses. “A dona da churrascaria sabia do caso e nunca me entregou, mas aí um pessoal de Grajaú me viu lá e telefonou para a delegacia. Eu só queria aguardar julgamento em liberdade. Ninguém acostuma com a prisão. Eu sou acostumado a trabalhar, me dou mal aqui”.
Na cela de Raimundo e de António Carlos, jogando dominó no chão, está um homem grande, de barbicha, que finge não prestar atenção ao jornalista. Chama-se José Carlos dos Santos Vale, tem 35 anos e foi condenado a 11 anos por assaltar a dependência do Banco do Brasil da cidade. Pertence a uma família considerada na cidade e era funcionário público. “Não tem prova nenhuma contra mim”, fala em tom de quase ameaça, “cê não é sincero na sua profissão? Que é que é isso...não fui eu não...o juiz mandou-me prender, eu vim caminhando pelos meus pés. Nunca roubei nada a ninguém e se Deus quiser, com muita fé em Deus, vou provar que não fui eu. Oh gente, não sou bandido não, estou preso aqui de graça”.
Umas celas mais à frente, um PM olha de braços na anca para os olhos tímidos e encabulados de Maurício Pereira da Silva, 25 anos, preso desde 19 de Julho por “latrocínio”— assalto a “ónibus” (autocarro) seguido de homicídio. “Esse aí pode pegar 19 a 30 anos”. Maurício olha-nos como se a implorar: “tire-me daqui”. É um momento de embaraço. As palavras de Maurício saem difíceis, em surdina, com esforço. “Não fui eu quem matou, não, me estão acusando porque me pegaram com a arma carregada”. O PM encolhe os ombros grandes. Parece querer dizer: “todo mundo diz o mesmo”.
Maurício trabalhava como madeireiro quando o cunhado e outro se juntaram a ele para formar um gang de assalto a autocarros. “A gente mandava encostar o ónibus, entravamos e pegavamos o dinheiro do pessoal”. No quinto assalto, as coisas correndo demasiado bem, um funcionário dos Correios de Grajaú identificou-os. Alguém o matou com uma “garruncha” serrada. “Mas não fui eu, não, foi o Francisco, meu cunhado, quem matou. Ele está rodando directo por aí e dizem que fui eu, não fui eu, não”.
Enquanto na primeira cela, predominam os homicidas e na quarta e última, os traficantes de maconha, nas outras misturam-se assaltantes com pequenos ladrões ou simples consumidores de maconha, como afirma ser, de boné negro dos Raiders, António da Silva. “Me acusaram de pegar a maconha mas não é minha não. Eu sabia que a polícia vinha atrás de mim e vim aqui à delegacia explicar os factos”. O problema principal de António, um mulato que já está ali há 85 dias, é a palavra do vizinho. “É, o vizinho me está acusando de ter jogado um quilo e meio de maconha no quintal dele. Rapaz, é mentira dele. Nunca roubei na minha vida. Eu até morava junto da delegacia e prestava serviço à polícia”.
Deitado no cimento, está um detido que alvejou um moto-taxista. “Fui seduzido por outro...fugi com a mota para Tocantins”. Tanto ele como a mota foram encontradas no Estado vizinho de Tocantins. O companheiro do crime fugiu, ele foi apanhado. “Me seduziu para o crime, entende?”
Outro, algo desprezado pelos colegas de cela, está lá por pequeno roubo: “Me acusam de roubar um “veado” (gay), uma bicicleta e uma bolsa com duas camisas...e também tomei dinheiro de um menino lá na praia do rio...” Um PM olha-o nos olhos: “Esse aí é um desgraçado, nem roubar sabe...”
Na cela ao lado, o “Chinezinho”, aliás Iranaldo Alves Bezerra, de 18 anos, um rapaz de olhos bonitos de criança, não sofre de timidez. Já ali está pela quarta vez. O delegado já lhe deu uma chance, pô-lo a morar com ele mas o “Chinezinho” acabou por roubar a arma ao próprio delegado. O “Chinezinho” gosta de contar as façanhas e de ouvir as gargalhadas dos outros presos.
“Lá em Imperatriz, assaltava bicicleta e ónibus directo. Mandava todo o mundo não se mexer e aí gritava: passa o troco e o relógio!” “Chinezinho” ía sempre armado de pistola 38 ou 22 e de um facão que afirma agora ser mais para amedrontar. “O pessoal deixava o troco fácil”.
De Imperatriz, a segunda maior cidade do Maranhão, quase na fronteira com o Estado do Pará, “Chinezinho” regressou à cidade de Grajaú. “Rapaz, aqui me virei para supermercado. Muitas vezes era eu que arrombava com pé de bode (pé de cabra). Rapaz, às vezes até que era dificil, viu? Era três, quatro, cinco cadeados...outras vezes o portão estava fechado por dentro, tinhamos de rebentar a base”. Que roubava? “Roupa, maço de cigarro, caixa de pilha...rapaz, foi um prejuízo bom”, diz de sorriso nos lábios.
Esta já é a quarta vez que “Chinezinho” está detido na delegacia de Grajaú. “Rapaz, eu estava lá em casa da minha irmã, aí ela comunicou que estava vindo a polícia. Me escondi debaixo da cama. Aí o pessoal entrou dentro de casa e ouvi um policial dizendo: “Olha só quem está debaixo da cama”. Me algemaram e me trouxeram para aqui”.
A cela de onde chegam as gargalhadas é a dos “traficantes de maconha”, todos presos numa operação da Polícia Federal que utilizou 50 homens e helicoptero para combater o tráfico de maconha junto da vizinha cidade de Arame. Um polícia militar olha para eles e diz que são responsáveis por 2 mil e 600 quilos apreendidos. “Que é que é isso”, reage Francisco Neutro Pacheco, que se assume como agricultor, “essa turma aqui só é responsável por 460 quilos!”
E então Francisco, porque plantou a maconha? “Rapaz, eu plantei porque me senti seduzido, a pessoa me seduziu, disse que produzisse fumo que ele comprava”. Quem era ele? “Rapaz, eu vi ele uma vez só, nunca acertámos um preço. Aí, veio a Polícia Federal e pegou a gente. A gente somos lavrador, entende, sempre plantei arroz, milho, mandioca, banana, abacaxi. Não tinha arma, nunca roubei, nunca estuprei...”
Num espaço tão claustrofóbico, com apenas dois polícias de guarda durante a noite, a fuga é uma tentação. Só em 8 meses houve três tentativas de fuga. “Serraram as grades duas vezes”, conta o delegado Cleosnaldo Brito, “outra vez arrombaram a parede, o carcereiro é que viu que a parede já não tinha reboco”. O pior aconteceu a 14 de Outubro do ano passado. Quatros detidos conseguiram pegar o revolver de um polícia militar, obrigaram o carcereiro a lhes dar as chaves e fugiram.
Outras vezes, rebentam brigas entre os presos da mesma cela. “Quando chega um novo, eles sempre amassam ele até as coisas ficarem calmas de novo”, conta um polícia. “Ainda ontem”, recorda o delegado, “houve aí uma briga feia entre dois detidos”. Chegamos junto às grades e perguntamos se há brigas lá dentro da cela. “Não senhor, aqui todo o pessoal se respeita, o pessoal é unido”, responde com seriedade um dos presos.
Se os 34 detidos se acumulam em condições deploráveis, a vida insegura dos dois polícias militares de serviço parece não ser muito melhor. “A gente trabalha 24 horas e descansa as seguintes 24 mas na folga sempre tem serviço extra, blitz, não dá para descansar”, explica Jaime Amorim Garcia, 13 anos de PM, que ganha cerca de 60 contos e tem uma televisão a preto e branco em cima do balcão da delegacia como única distração. “Tem muito companheiro nosso na junta médica (de baixa). A gente não dorme direito, sofremos ameaça de marginais, estamos constantemente prendendo e recebendo ameaça”.
A 15 de Agosto de há dois anos, Jaime viveu o seu pior momento como PM. “Tinha traficante de “maconha” dentro de uma reserva indígena, aí nós fizemos uma barreira na estrada que dá acesso a ela. Quando íamos retornar, vimos os índios, todos de revolver e espingarda. Eramos quatro PM, eles atiraram mais de 30 bala no volkswagen. A gente não pôde responder porque estavamos armados de fusis e metralhadoras. Por um palmo, não atingiram o motorista”.
Para aliviar o stress do serviço nocturno na delegacia, quando tem de ficar de plantão, Jaime escreve poemas. “Trago sempre o caderno e escrevo aqui nesse balcão, sobre tudo, sobre a vida policial, o quotidiano, amor, a natureza”. Jaime já lançou um livro e tem participação em três antologias.
A figura mais emblemática da delegacia de Grajaú,no entanto, é o “Pêce”, um homem pequenino, quase anão, de pele tisnada, carcereiro por vocação e voluntariado há nove anos, que sofre de problemas do foro mental mas é incorruptível mesmo apesar de não ganhar um centavo. “Nunca recebeu nada mas o cara só entrega a chave a mim, mais ninguém”, explica o delegado Cleosnaldo Brito. “E se um dia eu disser que ele não vai trabalhar mais aqui, o cara me joga pedras e enlouquece. A vida dele é aqui”.

2004-07-11

Gosto muito do meu país

Gosto muito do meu país. No meu país há muitas praias e muitos pinhais e temos muitos jogadores de futebol famosos em todo o mundo. No meu país, as pessoas são alegres e não ficam muito preocupadas se chegam tarde ao trabalho. O meu pai não fica. O meu país está mais bonito agora porque tem muitas bandeiras verdes e vermelhas nas janelas e penduradas nos carros. No meu país temos muito orgulho nos nossos futebolistas e no nosso seleccionador. O meu pai até diz que ele devia ser o nosso presidente. Mas, querido diário, estou triste porque o meu pai desde que o Euro acabou voltou a dizer que o país está mal, que os políticos são uns aldrabões e que as estradas estão cheias de assassinos. O meu pai dizia mal do Sousa da mercearia mas agora está sempre a dizer mal do Lopes, do Santana Lopes. E também não percebo porque é o nosso primeiro-ministro teve de ir para o estrangeiro. Ninguém lhe fez mal...Até mudou de nome, dizem que no estrangeiro passou a chamar-se José Barroso e o nome dele em Portugal era José Manuel Durão Barroso. O meu pai também ficou todo chateado porque votou Ferro Rodrigues e agora diz que ele é um lingrinhas. Eu acho que a política faz com que o meu pai fique mais chato e aborrecido. Ontem não me deixou ver os "Morangos com Açúcar". Tenho saudades do meu país quando o Helder Postiga marcava um golo aos ingleses e nós lá em casa gritavamos todos: "goooolo, gooolo de Pooooortugal!"

2004-07-09

Estradas perdidas do sertão

Mataram um camionista, ontem à noite, na “linha de fogo”. Encontraram o corpo, de madrugada, duas balas na cabeça, à beira da estrada. Ninguem sabe pormenores. Alguém ouviu no rádio CB que comunica com os camiões que circulam naquela área. “Marido”, pergunta a dona de casa de Juazeiro, Estado da Baía, enquanto prepara ovos estrelados, “de onde era o caminhoneiro que assassinaram ontem? Era de Santa Catarina ou de Rio Grande do Sul? A gente só ouviu na rádio...”
O camião apareceu? “Isso, o camião ‘tava transportando cerâmica, não levaram a carga, mataram o cara só por dinheiro, encontraram o camião vazio, na estrada...”
Norberto Pacheco de Farias, 33 anos, ouve em silêncio, em frente a um prato de arroz, macarrão e ovos estrelados oferecido pelos donos da casa. Em boa hora, decidiu passar a noite ali, em Juazeiro e atravessar a “linha de fogo” à luz do dia. “´Tá louco, de noite, eu não passo nunca”.
Dia seguinte, seis da manhã de 11 de Julho de 1998. O camião cor de laranja Scania de Norberto, transportando 22 toneladas de pó de borracha carregado em Cubatão, perto de São Paulo e para descarregar a 3 mil e trezentos quilómetros a norte, em Fortaleza, faz-se de novo à estrada, desta vez o trecho Petrolina-Salgueiro, no sul de Pernambuco, conhecido pelos “caminhoneiros” como a “linha de fogo”. É o trecho mais perigoso da viagem. Os pátios dos postos de gasolina, onde os camionistas estacionam e dormem, são vigiados por homens com espingardas 12 à cintura.
“Eles botam pau para fazer parar o camião ou então, eles seguem a seu lado, apontam uma 12 a você e dizem para você parar na berma. Todo o Brasil é perigoso mas aqui é muito perigoso. De noite, só um louco, tem muito pouco caminhoneiro fazendo esse trecho de noite”.
Já passamos Petrolina, avançamos sertão dentro em direcção a Lagoa Grande, onde foi morto o camionista na noite anterior. Norberto liga o CB do camião e tenta comunicar com o camionista mais próximo. “Alô Tubarão, alô tubarão, aqui Maçarico, aqui Maçarico”. De repente, ecoa na cabine a voz de um “caminhoneiro” mineiro, que segue em “comboio” com outro colega de Itajubá, Minas Gerais: “Cara, eu tenho medo de passar aqui de dia, de noite...’tá louco, de noite você tem 95 por cento de ser assaltado”.
Norberto, no entanto, apesar de apenas viajar ali há seis meses, é um camionista avisado. “Em Janeiro, quando estava viajando para Fortaleza, assaltaram um ónibus de passageiros. Mataram o motorista com dois tiros na cabeça e deixaram todo mundo pelado”.
Os saques do Movimento Sem Terra naquela estrada, rodeada de fazendas ocupadas pelo MST dos dois lados, também obrigam os camionistas a ficarem de sobreaviso. “Na minha última viagem, havia saque em Santa Maria, aí avisaram todo o mundo pelo rádio, eu fiquei esperando em Petrolina, só saí num comboio de 70 camião”.
Em breve, seguimos em comboio, juntamente com os dois camionistas mineiros. Um deles fala interminavelmente, preenchendo a desolação da travessia com mil e umas histórias, sem dar tempo a Norberto de responder. De repente, ouve-se “bam!” Um pneu do atrelado acaba de rebentar em plena “linha de fogo”. Norberto salta lá para fora. O segundo camião mineiro para junto a nós. O outro continua a falar durante uns dez minutos. “Pô, o cara com um pneu rebentado e você falando, falando”, comentará mais tarde, já no posto de gasolina de Salgueiro, para onde seguimos devagar.
Olhos esbugalhados, o rosto marcado de viagens por todo o Brasil, o primeiro caminhoneiro mineiro convida-nos na bomba de gasolina a comer a refeição de arroz, feijão e carne seca que prepara, com uma pequena botija de gaz, na mala do camião. “Olha aí, azeite português!”, diz, exibindo uma lata lusitana com orgulho.
O camionista mineiro, agora ocupado em cozinhar sob um calor sufocante que nos obriga a comer à sombra de dois camiões, já foi assaltado ali em pleno posto. “Aqui nessa região, matam você por cinco reais. Estava parado no posto de Salgueiro, às cinco da tarde, tudo iluminado, arrumando os pneus com o borracheiro, aí chegou um cara, encostou-me o revolver e gritou “passa o rádio, passa o rádio”. Eu disse que não conseguia tirar, ele gritando “me dá o rádio, me dá o rádio”, os olhos carregados de maconha. Aí, ele agarrou o braço do borracheiro, eu peguei a mão na porta do camião, atirei com força no cara, o cara caíu, eu fugi”.
A lei brasileira impede os camionistas de andarem armados. “Dois anos de prisão se apanharem você armado”, explica Norberto. “Mas é melhor assim. Você consegue matar um bandido, os outros matam você. Se você não reagir, largam você no mato”.
Norberto saíra de Cubatão, subúrbio industrial de São Paulo, na manhã de quarta-feira, dia 8 de Julho e esperava chegar a Fortaleza no domingo, dia 12, a tempo de ver a final da “Copa” de 98. Pelo meio, ficaria um universo de camionistas guiando sob o efeito de “rebite”, estradas esburacadas ou cruzadas por animais, ameaçadas por assaltantes, postos de gasolina enxameados por prostitutas, distâncias de milhares de quilómetros de sertão puro.
Quando conhecemos Norberto, em Cubatão, montado em cima do seu Scania, tinha o tronco nú, a cara farruscada, os olhos rodeados por um círculo negro do pó de borracha que acabara de carregar. Um autocolante no vidro do camião pedia a São Cristovão que protejesse aquele motorista, uma toalha com uma bela e nua morena, de seios redondos, estendia-se a todo o comprimento da pequena cama, por trás de Norberto. “‘Tou parecendo o Conde Drácula, não ‘tou? Eu não mexi em nada, foi só de ficar lá olhando no meio daquela poeirada. A minha camisa ficou toda grudada”.
Preparava-se para regressar à estrada, até Fortaleza, 3.300 quilometros a norte, se se pode falar de regresso. Estivera dois dias em casa, depois de uma viagem de quase 40 dias no camião. Agora, esperavam-no mais um circuito São Paulo-Fortaleza, transportando pó de borracha, Fortaleza- Salvador, onde carregaria soja, daí para Minas Gerais e daí para Paranaguá, Paraná, onde carregaria acúcar de novo para Fortaleza. “Eu moro na estrada e passeio em casa”.
No Rio de Janeiro, é que Norberto não carrega mais. “O Rio é cidade de sem vergonha. Deixaram-me lá enrolando três dias, aí não queriam pagar minha diária. Eu disse que se não pagassem minha diária, botava o camião na frente da porta da fábrica. Aí o cara chamou a polícia: “Aí paulista, que é que cê quer?” Eu disse ao policial: Não bota mão em mim, que eu não sou ladrão, tenho o cadrasto limpo, eu só quero minha diária. O cara disse: “Ah, você é muito bocudo”. Aí, acabei batendo papo com o policial, mandei o cara da fábrica enfiar a diária no cú e disse: “Senão couber, enfia no da sua mulher também”.
Ao Rio, não volta mais: “Eu disse ao cara, se depender de mim, podem ‘tar aí passando fome que eu não venho aqui trazer comida para vocês, seus cabras sem vergonha”.
Dantes, Norberto chegava a ganhar 10.500 reais por mês. “É, nessa época tinha cara ficando rico. Eu ía e vinha a Fortaleza, tirava 7.500 reais. Agora, para fazer esse dinheiro, tenho de andar 40 dias buscando frete em todo o lado. ‘Tá ruim p’ra caramba, agora”. A culpa é do real. “Com o real, subiu o preço de tudo, baixou o frete”. O sonho de Norberto, agora, é amealhar o suficiente para montar um posto de gasolina perto da cidade natal, Jundiaí, São Paulo.
Ele e o sogro possuem três camiões, com os quais já conseguiram fazer algum dinheiro, no tempo em que o frete era bom. Amadeu Pires dos Santos, 55 anos, o sogro de Norberto, que faz fretes na região de São Paulo e está sempre de sobreaviso aos ladrões da região, já foi assaltado na serra, a caminho de Ribeirão Preto. “Levava remédio, a carga era boa. Os caras têm informador nas fábricas que dizem o camião que vai saír, a carga, tudo. Eles querem remédio, veneno, televisor, aparelhagem. Não adianta tapar com a lona, eles comunicam por celular e assaltam na estrada. O meu sogro foi assaltado às 5h30. Só não levaram o camião porque estragaram as mudanças”.
Desde que há dez anos trocou o sedentário emprego de mecânico numa fábrica de Judiaí pelo de camionista errante, Norberto nunca foi assaltado. “Graças a Deus. Eu nunca facilito, não dirigo à noite em estrada perigosa e no posto, eu sempre tranco o camião”.
Norberto gostava de levar consigo Leandro, o filho de nove anos que já aprendeu a fazer marcha atrás no camião e está doido para viajar com ele. “Não dá, ‘tá louco, é muito perigoso, não dá para arriscar”.
O camionista paulista não toma “rebite”, como muitos colegas de profissão, que guiam horas e horas sem parar pelo Brasil à custa de tomar a droga. “Eu não tomo. Um cara toma rebite, aí o cara fica aceso, só que na hora em que o rebite deixa de fazer efeito, o cara dorme”. Ri-se quando lhe falamos no limite de oito horas seguidas que vigora na Europa. “Ai é? Porra, aqui eu já fiz 38 horas seguidas, sem “rebite”.
São Paulo, dia 8 de Julho, quatro pistas, viadutos, prédios e mais prédios, tráfego intenso na Avenida dos Bandeirantes. “Aqui você pode ficar três horas para fazer três quilómetros, você fica doido. Olha a bagunça que é. E os carros pequenos não respeitam camião, não, vão entrando em qualquer lugar”. Tomamos a Via dos Bandeirantes, quatro pistas rumo a Campinas, depois a Via Anhanguera, um mar de camiões ultrapassando-se, entre uma paisagem de eucaliptos cobrindo os montes. “Aqui em São Paulo, assaltam 20 camião por dia. Aparecem de carro ou de moto, mandam parar você, em pleno dia e tem mais outros controlando à frente e atrás”.
Em Jundiaí, um subúrbio industrial a uma hora de São Paulo, a família despede-se de Norberto. Afinal, foram apenas dois dias em casa. “Não fica enrolando muito lá em Fortaleza, viu?”, diz a esposa, roendo as unhas. “Quando cê volta, paíê?”, pergunta ansioso Leandro. “Ele não sabe, né?” Norberto responde: “Talvez daqui a um mês”. Leandro trepa a porta do camião, espreita, está desejoso de viajar também. “Desce Leandro!” Norberto benze-se. “Chau paiê!”, grita Leandro.
“Oi negão, bota aí água no camião!”, grita Norberto na bomba de gasolina de Judiaí, a última paragem antes de se fazer à estrada, rumo a Belo Horizonte. Depois de uma via rápida ainda no Estado de São Paulo, a estrada piora em direcção a Minas Gerais, repleta de camiões, em obras, com desvios que surgem de todos os lados. “A gente nunca sabe de onde vai surgir novo desvio”. À frente, irrompe de repente um camião de Santa Catarina. “Tinha de ser um sulista mesmo! Até hoje, só encontrei dois irmãos sulistas gente fina p’ra caramba. O resto não presta. Acham que o camião deles é o melhor, acham que são mais bonitos, não falam com a gente”.
Um camião velho nunca mais ultrapassa outro que segue à frente. “‘Tá vendo porque é que eu gosto de conduzir à noite? Por causa desses palhaços que ficam aí atrapalhando a gente”. Norberto carrega no acelerador e executa uma ultrapassagem de cortar a respiração. Ultrapassa os dois camiões em cima de uma curva. “E se viesse algum daquele lado?”, pergunta, como se a culpa fosse da lentidão dos dois camiões e não da sua ultrapassagem.
Norberto pára junto a um Posto Fiscal para carimbar a papelada da carga. É um ritual que terá que repetir vezes sem conta durante a viagem. Outro ritual é pegar num martelo de madeira e martelar todos os 16 pneus do atrelado.
A noite cai inesperadamente fria em Minas Gerais. Nem o forró da cassete que Norberto coloca faz aquecer a cabine. Perto de Pouso Alegre, os cantoneiros aquecem-se junto a fogueiras. Dormimos dentro do camião, numa bomba de gasolina, sob um frio serrano que não joga com a nossa imagem do Brasil.
A 9 de Julho, Minas Gerais amanhece sob um céu lavado e frio. “Nem tranquei a porta”, percebe Norberto, às 5h00 da manhã, de escova de dentes na boca. Os viajantes trazem gorros de lã na cabeça, blusões, as mãos nos bolsos, os campos cobertos de geada. A neblina engole a rodovia Fernão Dias, enrola-se nas serras, cobre as fazendas como um manto. Ao fim de intermináveis subidas e descidas entre montes e fazendas, Belo Horizonte surge envolta num mar acastanhado de smog, que não deixa visibilizar os contornos dos edifícios. “Oh só o cheiro, parece São Paulo”, comenta Norberto. Numa placa lê-se “Bem vindo a Contagem, coração da indústria mineira”. Na realidade, apetece fugir dali, das fábricas, dos escapes. Só a montanha mal recortada lá ao fundo parece respirar em sossego.
Minas Gerais parece não acabar nunca, à medida que a paisagem se torna mais seca, a estrada mais plana, entre placas anunciando “minhocuçú”, “sarapó”, “pamonhas”, coco gelado. Em Paraopeba, um cartaz anuncia a “linguiça da Beté, a melhor de Minas”. Estamos ainda a uns 500 quilometros do Estado da Baía e já a estrada é apenas uma recta interminável, um risco cinzento e solitário em direcção ao horizonte. Para combater o tédio, Norberto liga o rádio e entretem-se a ouvir camionistas norte-americanos e argentinos no CB. “Benvindo a Corinto, portal do sertão mineiro”, saúda uma placa a toda a extensão da estrada.
O calor aperta dentro da cabine. O sertão dá lugar a montanhas e declives que suplantam qualquer das descidas da IP-5. Numa curva da serra, onde temos de descer muito devagar por causa da inclinação, aparecem duas cruzes ao lado de um camião todo esmagado. “Viu a carreta? Bicho, não pode abusar na serra, bicho”.
Atravessamos povoações minúsculas, empoeiradas, perdidas entre eucaliptais e pinhais, sem luz eléctrica, banhadas à noite por um luar magnífico. As descidas sucedem-se até que um cheiro intenso a borracha invade a cabine do camião. “Os pneus da carreta estão sem freio, cara, há um pneu que está fininho, fininho”, diz um incansável Norberto, que guia há umas 15 horas.
A serra daquela região solitária e inóspita do norte de Minas termina de repente com as luzinhas da cidade de Salinas disseminadas pelo vale. Na bomba de gasolina, há dezenas de camiões, homens entrando e saíndo do “banheiro” de toalha no ombro, enquanto outros camionistas, rostos afogueados, t-shirts baratas, calções, alguns de toalha que trouxeram do chuveiro, bebem cerveja e contam uns aos outros as peripécias da descida da serra. “Cê lembra aquela curva, a segunda...”, diz um. “É a terceira, bicho, é a terceira”, corrige alguém. “Isso, a terceira, a carreta ‘tava quase quebrando, balançando, balançando”.
Ao fim de 17 horas consecutivas de viagem, uma placa anuncia “Benvindos ao Estado da Bahia”. Como que complementando a mensagem, a estrada piora logo, contorce-se em altos e baixos inacreditáveis, em estrias, em lombadas. “Coloca essa lombada na buceta da filha do prefeito, na mulher, na mãe, puta que o pariu!”, explode Norberto, com o camião e o atrelado aos tombos. Custa a crer que aquela seja a BR-116, que liga o Rio de Janeiro a Salvador. Os camiões passam pela estreita tira de asfalto quase raspando no camião de Norberto e de máximos ligados. “Vai tomar no cú! Baixa essa merda!”
De um e do outro lado da estrada, em cada lugarejo que atravessamos, ficam as “zonas”, bares e restaurantes que servem, na realidade, de bordeis para os camionistas, casas miseráveis onde as “perversas” ficam encostadas à porta, mal iluminada.
Ali, um dos perigos de guiar à noite, são os animais— vacas, burros. cavalos— que aparecem perdidos na estrada. Em pouco espaço de tempo, passámos por duas vacas na escuridão da pista. “Com esse balanço, se pega uma vaca, não dá para fugir”. Outro problema são “os sem vergonha”, os polícias rodoviários brasileiros que escolhem a noite para mandar parar os camiões e extorquir dinheiro sob o pretexto de uma anomalia imaginária no camião.
Dia 10 de Julho. A aurora desponta em tons cor de rosa no céu do sertão da Baía. A estrada a princípio é apenas uma recta quase infinita feita de luzinhas e que se perde na montanha que cobre o horizonte. Uma linha branca de neblina atravessa-a na horizontal. A luz descobre povoações de casebres em várias cores, telha velha que ameaça desabar, habitantes que ficam junto às lombadas tentando vender fruta, peles, berimbaus, camionetas de caixa aberta servindo de carro escolar para dezenas de alunos de camisa branca.
O sertão da Baía tem vagas semelhanças com o oeste americano, sobretudo quando, a caminho de Feira de Santana, a estrada se estende numa recta de mais de 50 quilometros e a paisagem irrompe em estranhas formações rochosas, gigantes de pedra que ora lembram um pénis, ora uma boca rasgada na pedra. De vez em quando, uma voz surge no rádio do camião avisando que há polícia na estrada: “Os botina (a polícia) ‘tão caíndo em cima da galera, tem aí botina!”
Os camiões mais antigos, passam por nós com dizeres na parte de trás: “De onde venho trago amor”, “venci a distância, matei a saudade”, “meus filhos, minha vida”, “hoje aqui, amanhã não sei”, “70 passar, 100 atrapalhar”, “abençoado por Deus”, “viva e deixe viver”.
Norberto evita falar sempre nos perigos da estrada quando vai a conduzir mas por vezes é impossível esquecê-los. Quando a noite estrelada do sertão se abate sobre uma região muito pobre e perigosa da Baía, deparamos com um carro à beira da estrada todo inclinado, as luzes acesas, numa posição esquisita, encostado a uma árvore. “Viu? Viu aquele carro? ‘Tava sendo roubado. ‘Tava um cara pelado e o outro em pé, roubando”.
Duas da manhã de 11 de Julho, posto de gasolina de Juazeiro, Baía. Um solitário empregado da lanchonete, aberta 24 horas, tenta perceber a versão dobrada de um filme sobre Mike Tyson. Um ou outro camionista acerca-se do balcão, de toalha ao ombro. “Não entendi nada”, comenta o empregado, varrendo vagarosamente o chão da lanchonete.
Os postos são os portos de abrigo dos camionistas, onde dezenas de camiões estacionam durante a noite em segurança, com lanchonetes abertas toda a noite, onde é possível conversar com os outros irmãos da estrada, beber café, comer carne de sol, onde há telefone, fax, onde se pode tomar um banho, comprar souvenirs, autocolantes que pretendem dar força espiritual a quem se sente sózinho na estrada e onde se lê “Se Deus é por nós, quem é contra nós?”
Nesses locais, vê-se gente de todo o Brasil: um casal de Santa Catarina viajando com um bébé que alimentam a biberon na lanchonete, camionistas nordestinos, de chapéus pretos e abas largas viajando em camiões que ameaçam desfazer-se, vagabundos pedindo boleia, prostitutas dando as boas vindas aos “caminhoneiros”.
Primeira paragem no Ceará, tarde de dia 11: “Oi meu irmão, vamo dar uma lavagem geral aí, meu irmão?”, pergunta um espontâneo lavador de camião. Norberto diz-lhe que não mas o rapaz não desiste. Daí a pouco pendura-se em cima do Scania e começa a lavar tudo sem autorização. Como não pede sequer para fecharmos os vidros, a água entra para dentro da cabine. Norberto chega e vê o rapazote em cima do camião. “Eu disse a você que não queria lavar”. Arranca com o camião e o rapaz só tem tempo de pular desajeitado do topo da cabine para o chão, sob as risadas dos colegas biscateiros.
Ali, toda a gente pede ou oferece qualquer coisa. “Tem cartão telefónico?”, “tem 10 centavos?”. As crianças que trabalham a colocar areia nos buracos da estrada, mal vêem um camião a aproximar-se, pedem moedas fazendo sinais com os dedos. Correm atrás dos camiões até lhes atirarem 10 centavos.
O Ceará transpira calor, povoações minúsculas entre centenas de quilómetros de Sertão, os habitantes caminhando lentamente, os homens em calção, as mulheres sorrindo, acenando para o camião. Há imagens que se colam ao cérebro: uma família—o pai, a mãe e o filho— a cavalo, uma vaca morta à beira da estrada, um grupo de homens esquartejando uma vaca, que tinha sido atropelada, à beira da estrada, um camião todo virado ao contrário, a carga espalhada em redor.
De repente, a norte de Icó, o sol esconde-se por detrás das montanhas que acompanham a estrada para Fortaleza, como se fossem vigias. Quando a escuridão se abate sobre o sertão, uma abóboda estrelada convida a espetar a cabeça para fora da janela e sorver o espectáculo, uma brisa morna invadindo a cabine.
É noite de sábado. Os arredores de Fortaleza transpiram animação, forró emanando dos bares, as mulheres circulando aprontadas para participar no baile mais próximo. Os “botina” parecem ter decidido tirar a noite para caçar uns reais. “Sem vergonha, filhos da puta”, rosna Norberto depois de ter deixado mais 10 reais nas mãos de um polícia para que ele não o multasse.
Fortaleza, o paraíso tropical, cidade do sol, está ali ao alcance da mão, mas a viagem termina no ambiente sórdido de uma bomba de gasolina repleta de prostitutas. “Oi caminhoneiro”, saúda em jeito de boas vindas uma mulata cearense, “menina de programa”, meneando as ancas debaixo de uma saia branca curtíssima.

2004-07-05

A vitória do não futebol

A selecção grega de futebol é campeã da Europa, o que não faz esquecer verdades indesmentíveis: A equipa de Otto Rehagel pratica o futebol mais cobarde, feio e traiçoeiro que eu alguma vez vi na vida. Ao pé dele, o catenaccio é uma brincadeira de crianças...Parabéns ao futebol pragmático...Que recordações, que fintas, que dribles, que golos deixa esta selecção para o baú de recordações do Euro 2004?

O dia seguinte

No dia seguinte, a Avenida do Mar acordou tranquila, sonolenta, como se nada se tivesse passado na véspera. As bandeiras continuavam todas nas varandas e nas janelas mas as pessoas conversavam em surdina, cumprimentavam-se com a lentidão e a pacatez de outros dias. O Euro terminara e Portugal perdera mas o facto de termos chegado à final e o Sol continuar a brilhar na praia ali a dois passos, retirou dos ombros dos meus vizinhos a carga dolorosa das derrotas humilhantes. Agora, a rapaziada da Farmácia vai voltar a chatear o Sousa da mercearia, o Jorge vai aborrecer-se de morte dentro da banca de jornais, os donos dos cães vão regressar às conversas sobre as vacinas e o galego, do outro lado da Alameda, vai dizer, enquanto serve mais um copo de tinto: "Eu não-vos tinha dito?"

2004-07-04

Canção do dia

"Força"
de Nelly Furtado


It is the passion flowing right on through your veins
And it’s the feeling that you’re oh so glad you came
It is the moment you remember you´re alive
It is the air you breathe, the element, the fire
It is that flower that you took the time to smell
It is the power that you know you got as well
It is the fear inside that you can overcome
This is the orchestra, the rhythm and the drum

Com uma força, com uma força
Com uma força que ninguem pode parar
Com uma força, com uma força
Com uma fome que ninguem pode matar

It is the soundtrack of your ever-flowing life
It is the wind beneath your feet that makes you fly
It is the beautiful game that you choose to play
When you step out into the world to start your day
You show your face and take it in and scream and pray
You´re gonna win it for yourself and us today
It is the gold, the green, the yellow and the grey
The red and sweat and tears, the love you go. Hey!

Com uma força, com uma força
Com uma força que ninguem pode parar
Com uma força, com uma força
Com uma fome que ninguem pode matar

Closer to the sky, closer, way up high, closer to the sky

Com uma força, com uma força
Com uma força que ninguem pode parar
Com uma força, com uma força
Com uma fome que ninguem pode matar

Cenas campestres

"Estive três horas em Condeixa com o carro bloqueado no meio da confusão...deixei lá o carro e fui festejar. Dá-me uma mini", diz o vendedor de bebidas num remoto café da obscura aldeia de Ana de Aviz, concelho de Figueiró dos Vinhos. O café tem uma latada a cobrir a pequena esplanada que dá para um muro branco rematado a tijolo que a separa da estrada. Debaixo da latada, há sempre um ou outro aldeão a ler "A Bola", o "Record" ou o "Correio da Manhã". Agora, em plena febre do Euro, a proprietária colocou a televisão e o aparelho de recepção por cabo debaixo da latada. Assim, os clientes podem ver os jogos à fresca enquanto beberricam as minis ou enfiam pela goela abaixo aqueles copos redondinhos de branco quase gelado.
Por esta altura, o campo anda feliz. Ele é bandeiras portuguesas nos mais improváveis dos cenários: Uma bandeira irrompe colorida no meio de um campo de milho, outra agita-se ao vento presa por arames a uma chaminé antiga e as vinhas perderam a unanimidade do verde para se pintalgarem de vermelho. Aldeões circulam em motorizadas ou camionetas de caixa aberta com bandeiras desfraldadas. "Uh, aqui no dia do Portugal-Inglaterra foi uma loucura", conta a filha do dono do Café Maçudo, na aldeia das Bairradas, a cinco quilómetros de Figueiró dos Vinhos. "Estava pessoal até na rua..." O pior é que o Zé Luís, dono do Maçudo, instalou uma televisão grande no salão dos jogos para toda a gente poder ver o jogo mas esta estava sintonizada na Sport TV e tinha um desfasamento de três segundos em relação ao televisor mais pequeno do café. "Era a gente aqui a gritar golo e eles a vir a correr dali para ver aqui", conta a filha do Zé Luís, ao balcão de alumínio. "O meu pai já prometeu abrir um barril de cerveja no meio da rua mas só na final, só na final..."