estradas perdidas

Atrás de casa, encoberta por tufos de erva daninha, silvas e bidões abandonados, o comboio de janelas iluminadas vinha das Quintãs e silvou depois do túnel em curva, em direcção a Aveiro. Ali ao lado há uma estrada, a minha primeira estrada. Mulheres e homens cruzam-na impelindo teimosamente os pedais das bicicletas. Junto à vitrine de um pronto-a-vestir lê-se "Modas Katita". De uma taberna, saem dois homens que se dirigem para duas Famel-Zundapp. Estrada perdida.

2004-04-30

OS MEUS DISCOS FAVORITOS DE 2003

Gillian Welch- "Soul Journey"
Jolie Holland- "Catalpa"
The Be Good Tanyas- "Chinatown"
Caitlin Cary- "I'm Staying Out"
Lucinda Williams- "World Without Tears"
Marty Stuart- "Country Music"
Rodney Crowell- "Fates' Right Hand"
Robert Belfour- "Pushin' My Luck"
Mark Lemhouse-"Big Lonesome Radio"
Patty Loveless- "On Your Way Home"
Bruce Springsteen- "The Essencial (With Bonus CD)
Emmylou Harris- "Stumble Into Grace"
George Jones- "Gospel Collection"
Ryan Adams- "Love Is Hell, Part 1"
Steve Earle- "Just An American Boy"
Todd Snider- "Near Truths & Hotel Rooms Live"
Rosie Thomas- "Only With Laughter Can You Win"
Kathleen Edwards- "Failer"
Rosanne Cash- "Rules Of Travel"
Dar Williams- "The Beauty Of Rain"
Laura Veirs- "Troubled By The Fire"
Stacey Earle e Mark Stuart- "Never Gonna Let You Go"
Dwight Yoakam- "Population Me"
Carla Bozulich- "Red Headed Stranger"
Lyle Lovett- "My Baby Don't Tolerate"
Joe Strummer & The Mescaleros- "Streetcore"
Joe Henry- "Tiny Voices"
Grandpaboy- "Dead Man Shake"
Neil Young- "Greendale"
Black Keys-"Thickfreakness"

Banda sonora do dia

IRON AND WINE-"OUR ENDLESS NUMBERED DAYS"- SUB POP RECORDS, DISTRI. Música ACTIVA

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2004-04-29

Na I-61 (Dá nome a um belo disco de slide do Sonny Landreth)

O Sul dos Estados Unidos emerge ao longo da solitária I-61, entre a chuva que cai em catadupa e de repente, por entre relâmpagos. As copas das árvores chegam até à estrada e envolvem-na num manto verde.
Entramos num Hilton em Baton Rouge, Louisianna, à procura de uma loja de charutos. À porta estão estacionadas duas enormes e brancas limousines. Saímos de lá com um casal local que nos diz para seguirmos a sua pickup. Levam-nos por entre blocos de moradias de madeira, onde há cadeiras de balouço e mães com os filhos ao colo a balouçar.
O casal leva-nos a uma loja de tabaco toda em madeira, onde se pode encontrar em frascos todo o tipo de tabaco menos o cubano. “Os cubanos”, explica-nos o dono, “têem o melhor tabaco do mundo mas enrolam-no em más condições”.
Há todo o tempo do mundo para conversar e existe mesmo uma mesa onde fumadores inveterados se sentam a experimentar charutos. Depois, perguntamos ao dono da loja onde podemos comer bem em Baton Rouge. “Venham comigo”, diz. Mete-se no jeep e faz sinal para o seguirmos. Leva-nos a um bar em madeira onde fazem um “paradise” burger espectacular. “Este é o tipo de sítios que só os locais conhecem. Vocês nunca viriam aqui”. Mais tarde, damos conta de que deixámos as chaves dentro do carro. Os empregados não perdem tempo em chamar um especialista em abrir portas com um arame.
O sul é também a terra onde os homens vestem overalls (jardineiras) e cospem tabaco de mascar, guiam pickup-trucks com a bandeira dos confederados pendurada atrás. É a terra onde as mães balouçam com os filhos ao colo em alpendres de madeira com ventoinhas a rodar em cima. É a terra onde as empregadas de mesa nos recebem de mãos nas ancas: “How all y’ all doing today?” É a terra onde as temperaturas elevadas carregadas de humidade obrigam toda a gente a socorrer-se de uma bebida.
Ao lado da máquina de coca-cola, há sempre um caixote enorme com cubos de gelo para deitar dentro de grandes copos de plástico. Mas eles não deitam gelo apenas na coca-cola. “Take it”, disse-nos um negro que seguimos religiosamente até à loja de bebidas mais proxima. Pegou numa caixa de plástico cheia de cubos de gelo e preparou-se para nos encher o copo de cerveja com eles. “ Não, não, não, muito obrigado”, fomos obrigados a dizer.
Algumas experiências no Estado do Mississipi são difíceis de traduzir em escrita: comer um panado de frango a ferver e picante enquanto as gotas de suor pingam sobre a nossa t-shirt encharcada, sob as picadelas súbitas dos mosquitos.
Nas lojas de um grande centro comercial, somos tratados respeitosamente por “sir”. Muitas pessoas, especialmente os empregados, não fazem qualquer esforço para reduzir a sua pronúncia sulista mas entre os quadros, há alguma preocupação em tentar falar normalmente. “Se falarmos com o sotaque sulista, podemos não ter o mesmo sucesso profissional”, explica-nos uma executiva de uma editora musical em Nashville.
Muita gente continua a ter um orgulho desmedido em usar a bandeira dos confederados. “Ele está a fotografar o cão ou a bandeira?”, perguntava intrigado um jovem do Arkansas num café de estrada. Quando soube que o fotógrafo estava a fotografar a bandeira dos confederados pendurada na sua pickup truck, saíu imediatamente para o exterior para puxar a bandeira e pousar orgulhosamente a seu lado.
O Sul despediu-se-nos numa manhã de chuva, uma manhã quente e abafada. Com a facilidade com que se apanha um avião nos Estados Unidos, de um momento para o outro aterramos no meio da civilização, entre yuppies engravatados, donas de casa a passear caniches e taxis amarelos com vidros a separar o motorista dos clientes.

Banda sonora para a I-61

Robert Belfour
R.L. Burnside
Jessi Mae Hemphill
Sonny Landreth
Junior Kimbrough
O Catálogo da Fat Possum
Documentários: "Deep Blues" de Robert Mugge ou "The last Of The Mississipi Jukes"

COUNTRY TO THE BONE

Nunca vi uma cidade que lidasse tão eficazmente com os seus fantasmas como Nashville. Elvis, que em jovem subiu ao palco do Grand Ole Opry para se ver humilhantemente assobiado por uma plateia de fanáticos da country, deixou por lá um enorme e branquíssimo Cadillac 75 de 1960 que levanta a capota e deixa ver junto ao banco de trás, um televisor, um rádio, um gira-discos, um telefone e um bar revestidos a ouro. Mas tem mais. Quem tiver a curiosidade de olhar para cima, pode ver seis discos de ouro colados ao interior da capota. Mas Elvis não é o único fantasma a ser exorcizado daquela maneira. O Cadillac azul que transportava Hank Williams quando este faleceu, numa tenebrosa noite de fim de ano de 1952, está em exposição um pouco mais abaixo, no Museu do artista. Os turistas e incondicionais do honky-tonker podem passar por lá e imaginar um Hank Williams completamente alcoolizado a agonizar no banco de trás.
Felizmente que o Piper Comanche que se despenhou com Patsi Cline dentro no dia 3 de Março de 1963 ficou feito em pedaços porque senão estaria agora, muito provavelmente a servir de atracção turística num macabro Museu Patsi Cline. Mesmo assim, alguém conseguiu recuperar um relógio que ficou parado precisamente à hora do acidente e que hoje está em exibição no Country Music Hall OF Fame.
Mas em Nashville, há também as lendas imortalizadas naquelas horríveis placas de bronze da Country Music Hall of Fame e há as outras, as lendas vivas. Dolly Parton, a lenda viva. Willie Nelson, a lenda viva. Outros, deixam-se imortalizar em cadeias de restaurantes, como Kenny Rogers, ou em lojas de souvenirs como Randy Travis ou de discos como Ernest Tubb. Quando Dolly Parton morrer, lá ficará para a posteridade o seu parque de diversões Dollyland, como aconteceu com Conway Twitty. Faleceu? Para os seus fãs mais dedicados, Conway estará para sempre presente algures entre o mobiliário kitsch da Twitty City. Nashville lida com os seus mortos com a mesma voracidade comercial com que gere as carreiras dos vivos.

Taxi Driver Lisbon Style

“Eu não sou racista”, explica-me um taxista que acaba de me apanhar na praça em frente à Estação Sul e Sueste, na Praça do Comércio. “Mas olhe para isto, Lisboa está cheia de pretos!” Um grupo de africanos atravessa a passadeira congestionada à nossa frente e o simples facto de ter de esperar no sinal vermelho e ter de os deixar passar, parece irritar o taxista. “Eu nem me importo de os transportar, há colegas meus que ficam logo mal dispostos mas com tanto português aí sem trabalho, o que é que vêm para aqui fazer, vêm tirar o trabalho aos portugueses”. Vira-se para trás. “Ou não acha que eu tenho razão?”

Estradas perdidas II

Taberna de Santa Maria de Arrifana, Poiares, as paredes forradas por azulejos, os matraquilhos a um canto, uma dúzia de moscas varejando de tal forma que receio que uma me caia na chávena de café. Uma porta liga à venda, de onde aldeões olham desconfiados e garrafas de lixívia espreitam para o interior do estabelecimento. Um homem alto, esguio e rosto enrugado observa-nos fixamente enquanto mastiga uma sandes. Depois, faz tilintar uma moeda e pede um copo de branco. Quando retomo viagem, observo pelo espelho retrovisor. Lá está ele, no meio da estrada, ainda de olhos muito abertos na minha direcção.

No fim da linha

É como se estivesse suspenso sobre o abismo. Lá em baixo, emparedado entre desfiladeiros, o rio serpenteia, resvala e ressalta em pequenas cachoeiras. Na linha ferroviária do Tua, não há trecho mais belo. Chamam-lhe as “fragas más”. Em 1885, operários dependurados em cordas e empoleirados em pranchas britaram o patamar à força de dinamite.
A automotora sai de Mirandela com tanta lentidão que no pequeno caminho de terra que acompanha o comboio poderia facilmente seguir alguém a correr à mesma velocidade. Os choupos que bordejam o Tua são violentamente sacudidos pelo vento.
Na nossa carruagem, viajam umas seis ou sete pessoas. Uma professora, preparando as aulas com as folhas no colo, alguns estudantes e um estremunhado trabalhador agrícola que dormirá sempre, insensível aos desfiladeiros.
Raramente há casas ou povoações. A paisagem forra-se com as folhas amarelecidas e acastanhadas dos plátanos e os cachões turbulentos do Tua, onde por momentos a água castanha das enxurradas se transforma em espuma. De repente, aleluia! Uma vivenda em construção, toda em tijolo! À porta, um carro de matrícula suiça.
O comboio contorna as chaminés tristonhas do Complexo do Cachão e em Ribeirinha avistamos as últimas personagens do cenário do Tua: uma família que, debruçada sob as oliveiras, apanha azeitonas.
Desaparecem os campos e as fragas entalam o rio. A linha férrea encolhe-se num patamar sobre o Tua. Embora viaje constantemente à beira da ravina, os transmontanos que comigo partilham a carruagem não parecem muito intimidados. Conversam ou dormitam.
Sucedem-se apeadeiros e estações fantasmas, como Abreiro, Brunheda ou S.Lourenço. Nesta última, os vidros das janelas estão partidos e as paredes riscadas. Alguém acendeu fogueiras lá dentro.
Uma curva mais acentuada permite descortinar a trajectória do comboio ao longo da encosta. É como se uma faca imaginária ali tivesse cortado uma saliência. Quase nada nos separa do precipício. Não resisto e abro a porta da carruagem. A vista é de cortar a respiração. O patamar acaba logo ali e o leito xistoso do Tua surge logo em baixo, a 20 ou 30 metros. O apito do comboio ecoa ao longo do desfiladeiro...Thank you Lord Up Above!

Nas estradas perdidas I

Na escuridão solitária da noite da estrada, os relâmpagos repentinos que atravessam a cabine por poucos segundos transformam-se rápidamente em rotina: os faróis dos camiões em sentido contrário, o neon fugaz das gasolineiras ou de um ou outro estabelecimento. Ao fim de milhares de quilometros, uma espécie de anestesia por cansaço apodera-se de ti, camionista errante, o rosto manchado de um azul púrpura ou do verde enebriante da BP estampando-se-te no rosto.

Um Carnaval inesquecivel

A médica negra, os lábios descaídos, dirigiu os olhos muito abertos na minha direcção e da minha cadeira: "Você aí, porque é que está sentado aí?" Eu ? Eu? Perguntei-me várias vezes se a pergunta que me era dirigida como uma flecha seria verdadeiramente para mim. "Ah...sim...estou aqui sentado porque aquela médica— que médica? onde estava ela? Porque desapareciam todos ao fim de uns segundos rápidos de palpações no abdomen?—me disse para ficar sentado aqui".
Entrara nas urgências naquele estranho domingo de carnaval às 8h30. Há dois dias que me contorcia de dores, cólicas que iam e vinham, me faziam encolher de dor a espasmos e segurar o ventre à medida, que anormalmente dilatado, se virava contra o seu dono e o flagelava. A sala de espera tinha mais acompanhantes do que doentes. Um grupo de três mulheres falava de culinária e uma jovem descrevia a paisagem junto ao seu futuro e novíssimo apartamento na Aroeira. Tiraram-me sangue e um raio X, lá para as 10h30 e mandaram-me esperar. Atormentado pelas ondas negras das cólicas que a qualquer momento me assaltavam, ora tentava ficar sentado na claustrofóbica sala sobreaquecida e cheirando a suor, ora ficava ao ar frio da manhã. De vez em quando, agarrava-me à parede do hospital, as calças abertas no primeiro botão, a mão segurando o ventre e apetecia-me gritar.
Por volta das 15h00 voltaram-me a chamar. A essa altura já pensara várias vezes se não seria melhor bater em retirada e estender-me em casa, derrotado, à espera de uma horrível e dolorosa dor final. Uma médica forte e serena apalpou-me o abdomen e perguntou-me porque estava ali. Um idoso sentado numa cadeira de rodas perguntou ao fim de dez minutos: "desculpem, estou aqui por esquecimento?" Outro, sentado na maca, ao meu lado, queixava-se de falta de ar e arfava ruidosamente. Um homem que podava qualquer coisa com folhas no quintal de casa, tinha um pequeno rasgo na mão e queria ser suturado. "E você?", perguntou a médica a um rapaz forte, aparentemente normal. "Eu? Tenho tosse, muita tosse" e fez "cuf", "cuf" para exemplificar. Um homem jovem entrou pelo gabinete: "Desculpe, estou com dores horríveis, estou ali há cinco horas, tenho as minhas filhas à espera em casa sozinhas, quando sou atendido?" O resultado das análises do homem ainda não estavam prontas. "Vai ter de aguardar, está bem? Aguarde na sala, por favor, que o seu nome seja chamado".
Do gabinete de atendimento aos homens, via de vez em quando uma mulher da limpeza pintada com pontinhos na cara como a Pipi das Meias Altas e uma peruca verde, limpando o chão das urgências como se fosse tudo carnaval. Um enfermeiro ia-se entretendo a fazer umas partidas às colegas.
Durante todo esse tempo, um negro jazia imóvel, aparentemente a ressacar de uma grande bebedeira, sentado à minha frente. Habituei-me a vê-lo como um móvel que está numa sala de estar há anos. De repente, o homem moveu-se. Primeiro, começou a saír uma espuma branca dos dois cantos da boca. Depois, agitando muito os dois braços, foi deslizando pela cadeira até caír redondo no chão. Apeteceu-me gritar mas não saíu som nenhum. Uma voz dentro de mim dizia: "Aquele senhor está a ter um ataque!"
"Rápido, saiam da frente", disparou uma enfermeira, vasculhando frenéticamente o armário à procura de seringas. "Puxa-lhe a manga para cima, puxa-lhe a manga para cima!, exclamou, já de seringa na mão. Um batalhão de enfermeiros já se debruçava sobre o corpo agora inerte no chão.
Pouco depois, passado o alvoroço, no gabinete dos homens, instalava-se a rotina. Na sala ao lado, por detrás da vidraça, uma mãe aflita apresentou o filho, um recém-universitário muito branco e olheiras nos olhos. " Senhora doutora, isto dá-lhe desde que entrou para a universidade, fecha-se no quarto, de luz fechada e treme, treme, chora que não quer ir para a faculdade, que lá não tem amigos. E o pior é que desde que se zangou com a namorada, já me falou em suicídio". Ouvi a voz da médica elevar-se por cima das cabeças de quatro ou cinco doentes que aguardavam sentados na maca, que o jovem deprimido se fosse embora: "Rapaz, então, ânimo. Vais ter mais problemas pela vida fora..." No intervalo de mais uma cólica, apeteceu-me gritar a plenos pulmões: "Dêem-lhe um psiquiatra, porra!"
Uma outra médica, vestida com uma bata cor de alface, chegou com um clister e disse: "Vai colocar isto e ver se funciona. Escusa de ir à casa de banho da sala de espera, há uma ali". Atravessei a urgência. "Ouçam lá", gritou a mesma médica, "calem-me aquele gajo! O que é que se passa?" Um homem com uma ferida contundente na cabeça fazia: "aaaaiiiiii, aiiiiiiii". "Acho que foi a anestesia que passou", disse uma enfermeira. "Eh pa, ele que vá curar a ressaca para outro lado". A essa altura, já o rapaz esperava em pé que um Valium o pusesse mais calmo.
Quando a médica dos grandes olhos e lábios descaídos me perguntou porque estava sentado na cadeira à sua frente, eu tinha terminado de enfiar o clister sem quaisquer resultados. Na verdade, a outra tinha-me mandado esperar ali. Nunca mais a vi.
O médico seguinte, barbudo, de meia idade e fala pausada explicou-me: "Olhe, você vai ter que ficar cá para observação e provavelmente para uma expiração". Quando saíu da sala, um homem apareceu com uma maca: "Esta maca é para si? É para si ou não?" Respondi que não fazia a mínima ideia. Até que veio até mim o enfermeiro brincalhão. Tinha acabado de pregar mais uma partida porque ainda vinha a rir e a funcionária da recepção afastava-se dele tapando a boca de riso. Virou-se para mim e disse: "Você vai ser internado". Vi nos seus olhos e lábios uma malícia carnavalesca, estava exausto e cheio de dores. Dei por mim revoltado e a esbracejar: "Acho bem que brinquem ao carnaval mas eu é que não acho piada nenhuma!" O ambiente nas urgências era tão frenético que tenho a impressão que ele não me ouviu. Virou costas, deixando-me entregue ao homem da maca: "Esta maca é para si ou não?"
Senti-me profundamente ridículo e confuso quando me deitaram na maca, vestido, os sapatos educadamente tentando não sujar o lençol, acompanhado daqueles que eu considerava verdadeiros doentes, todos eles idosos, esquálidos, brancos, tossindo, soltando "ais" profundos. Atravessei de maca uma área onde todos respiravam oxigénio, até a sentir parar e uma enfermeira me pedir para me despir. "Aqui?" Claro, era ali. Puxou bruscamente uma cortina, deu-me uma bata verde que achei que me deixaria nú atrás e desapareceu, não sem antes eu ter perguntado: "As cuecas também?" Pôs as mãos à cintura— era morena, vagamente bonita— e respondeu: "Oh homem, claro". Foi então que apareceu o rapaz do espólio, encarregado de fazer o rastreio de todos os valores escondidos no recôndito dos meus bolsos. Era todo gingão e bem disposto. Não reparei se mascava chiclete mas era como se mascasse. Quando, já vestido de bata e umas ridículas pantufas verdes comecei a retirar o conteúdo dos meus bolsos, os olhos dele brilharam de alegria, não era mais uma "box", era um acontecimento. "Ouve lá, Marília, a próxima vez que eu faça um espólio destes, fujo contigo...Onde é que você ía com este dinheiro?" Só em notas contou 14 contos. Semi-despido, atordoado, rodeado de seres que ora apareciam ora desapareciam sem deixar rastos, preferi não responder. "Tiro tudo?", perguntei. "Tudo, homem, tudo cá para fora". Um tilintar metálico encheu o habitáculo à medida que saíam as moedas. "Mil e tal paus em moedas!" De vez em quando vasculhava os bolsos e saía mais uma nota amarrotada de 500 escudos. Até que chegámos às notas estrangeiras. Por essa altura, já um segundo colega se debruçava atónito sobre o meu património. "Ouve lá, vamos precisar do caderno grande para apontar isto tudo. Isto é o quê? Reais? E isto aqui? Pesetas? Saiu-nos um caixeiro-viajante..."
Não tive tempo sequer de pensar. Não percebia porque, muito de repente, os dois enfermeiros me assaltavam as narinas com um tubo de plástico comprido. "Ouça, vai ter de ficar calmo, okay? Vai ter de manter a calma". O enfermeiro das brincadeiras de carnaval enfiou o tubo pela narina direita, a coisa de plástico arranhou as paredes nasais, quis saír pela garganta, retrocedeu e continuou até ao estômago, com o enfermeiro sempre a gritar: "Engula, engula, engula! Vá, vá, está quase!" Experimentei engolir e tudo o que sentia era um objecto estranho, horrendo, entupindo-me a garganta. Queria vomitar e não conseguia.
Surgiu um novo médico de volta dos meus papeis. Viria a saber que fora ele quem detectara algo de anormal no meu raio X. Deu ordem para eu seguir para a "Gastro". Descobriria mais tarde que a "gastro", uns andares de maca aos tombos no elevador acima do caos da urgência, era um universo de acalmia e serenidade, onde enfermeiras simpáticas e médicos próximos de técnicos de manutenção de carros de fórmula 1, me esperavam para me aplicar as novas tecnologias. Nunca vira as minhas profundezas num ecrã nem sentira uma sonda bater nas costelas. A recto-escopia deve ter durado mais de meia hora. Ouvi falar em "volvo", em "anda mais para trás" e "um pouco mais à direita". Espreitei: o homem circunspecto da bata branca parecia agarrado ao volante de um automóvel enquanto a enfermeira me segurava delicadamente o ventre. " Gostava de deixar isto", explicou a segunda enfermeira para o funcionário que levaria a minha maca de novo para baixo, "é sempre a mesma coisa, muito monótono. Há especialidades mais interessantes. Acho que ia gostar de ir para a urologia, as vias urinárias, sabes?" Tinha poucas chances. "Aí já está a minha mulher, não tens hipótese", explicou-lhe o rapaz. "Vou ver para onde me posso transferir...aqui é muito parado".
Não tinha relógio, o tempo materializava-se nas idas e vindas de maca, os engasganços com o tubo, a expectativa de um outro médico, uma voz nova, uma nova instrução de viagem. Encontrei a médica forte e simpática de novo no raio X. "Já fiz, porque é que tenho de fazer outra vez?". Os médicos ainda não tinham falado comigo? "Sobre o quê? A aspiração? Sobre...?" Pediram-me para respirar fundo, encher o peito de ar e espetar a barriga contra a placa do raio X. "Ouça", disse a médica com uma serenidade inquietante. "Você vai ser operado". Quando, em que dia? "Ouça, você vai ser operado já, tem...os intestinos torcidos, percebe...e durante dois meses vai ter que usar um saco, um pequeno saco para as fezes". Não sei que reacção a mente, a minha, produziu nessa altura porque me lembro da voz interior dizer "oh meu Deus" e "está bem". Cá fora, ter-se-á ouvido um "hum hum" gelado, entre o receio e a resignação. Os olhos só humedeceriam quando vi a minha esposa, logo a seguir, na urgência. Foi coisa de dois, três minutos até a maca seguir para o bloco operatório.
A maca entrou numa sala fria e em mármore. Um ambiente alegre de quem vai colocar o avião em andamento para de seguida fazer uma viagem onde tudo correrá bem, perpassava pelas pessoas de batas brancas e verdes. Um programa de country ecoava de um rádio do canto direito. Como podiam saber que eu gostava de country? Adivinhei a voz nasalada do Randy Travis e disse para comigo: "Vamos lá a isto, "that's life"...
A médica dos olhos grandes e tranquilidade nos lábios apareceu-me já eu estava de braços estendidos como Cristo, debaixo de umas lâmpadas redondas e ominpresentes. "Caramba, você persegue-me", disse-lhe quase a rir. Sentia-me surpreendentemente bem. Perguntei-lhe se podia assistir à operação, se era anestesia local. Nem pensar, disse. Recordo a máscara e aquela voz feminina despachada, de quem parece pensar"vamos lá e nada de mariquices", dizer: "Respire, respire, é oxigénio puro!"
Foi tão bom. Devo ter dormido entre duas a três horas. Já não pregava olho há duas noites. Senti uma profunda sensação de desilusão ao acordar, queria mais, tinha sido muito agradável. Parecia apenas que me tinham dado um valium 10. As cabeças femininas enevoadas sobre a minha cama-maca fizeram-me retroceder a duas horas atrás. Como num sonho, ouvi o meu anjo protector, a minha médica, explicar que não precisara de saco. Devo ter ficado por ali mais de uma hora. Dei por mim a ouvir conversas privadas das enfermeiras. "Ali há qualquer coisa que eu ainda vou descobrir, ela anda ultimamente com uma atitide muito estranha", falava a que parecia a líder de opinião. Falavam de folgas, de jogadas e de golpadas, de inveja, de favorecimentos. Meu Deus, porque todos os empregos serão iguais? A mais faladora pedia união contra o que percebia ser um lobby de outras enfermeiras. Estendido ao comprido, supostamente alheio a tudo, eu não existia. Imaginar-me-iam ainda a dormir? Estavam-se nas tintas. Mal sabiam que aquela era agora a minha novela e elas as minhas actrizes.
O estado de graça demorou pouco. Não só voltaram as cólicas—estremecimentos aflitivos e dolorosos na horizontal— como a linha vertical que eu supunha por debaixo de uma enorme almofada de gaze, iniciou as suas próprias erupções e queixumes. Passei a noite sem dormir, a tocar na campainha e a agradecer aqueles anjos noctívagos de bata branca, sempre que apareciam com mais uma dose de analgésico para a veia. Os meus companheiros de quarto eram dois idosos, um rabujento e de poucas palavras, outro um incontrolável falador que passou a noite a chamar as enfermeiras— "ai que morro aqui hoje, ai que me mijo todo"— por causa do saco de urina e o dia seguinte a contar a história da noite: "Ia morrendo aqui porque a preta ("A preta" era um enfermeira negra a quem ele nunca mais perdoaria) espalmou o saco e não o substituiu". Passou o dia a repetir a mesma história: a "preta isto", a "preta aquilo"...
A janela sem pressianas, tive tempo para ver o céu passar do azul muito escuro ao azul clarinho e às explosões de luz da madrugada. Tentei por várias vezes esticar a cabeça e ver para baixo da abóboda celeste. Um esticão de dor vindo da barriga obrigava-me imediatamente a desistir. Nesse primeiro dia, houve momentos em que pensei ingénuamente que os 20 e tal pontos podiam rebentar, tal a tensão junto à costura. Apetecia-me gritar. Apeteceu-me mandar embora as visitas. Não podia rir e ao fim de alguma conversa, tive de parar de falar. Tiraram-me o tubo e a argália para a urina e aliviei um pouco. O mundo não existia para lá do que a minha vista e os meus olhos alcançavam. Todas as minhas forças estavam concentradas na resistência à dor e à circunstância de estar preso à cama.
Fiquei dez dias no hospital. Na terceira-feira de Carnaval, tiraram-me da cama, deram-me uma espécie de bastão parecido com o de Moisés, com lugar para as garrafas do soro e do analgésico e sugeriram que circulasse pelo corredor. Percebi que conseguia sentar-me na cama, que a costura não rebentaria e que as pernas ainda seguravam o resto do corpo. Descobri os outros quartos, uma recepção, uma improvisada sala de televisão ao fundo, o deambular frenético das enfermeiras e auxiliares.
No hospital, a vida lá fora pouco interessa. Centramo-nos nas diferenças entre cada enfermeira, na rapidez frenética da "workaolic" de rabo de cavalo a manusear a agulha, nos olhos azuis da mais gorduchinha, na que nunca sorri, nas que trazem aliança, nas que não trazem. Bebemos-lhes as conversas acerca das folgas ou das horas extraordinárias. Escutamos as mulheres da limpeza: "Queria saber onde estava a filha...sei lá onde está a filha, dormiu em casa do meu filho e pirou-se. Acho que se pirou para o Algarve..." Ouvimos os queixumes e gritos dos outros, habituamo-nos a ajudar e criamos rápidos e estranhos laços de solidariedade com pessoas que nunca víramos na vida: "Estás melhor?". Vivemos ao ritmo criado pelas enfermeiras—"Vamos lá a saír da cama", "já se lavou?", "deixe-me ver o braço", "ponha lá o termómetro", "vamos medir a tensão?".
Os companheiros de quarto são elevados ao estatuto de quase elementos da família, apesar de alguns partirem e outros chegarem. João foi o mais jovial: "Então rapaziada!" Ao fim de cinco minutos já estava a colectar moedas para ligar a televisão— uma hora era cem escudos— e a encher o ar de boa disposição. Apesar de ir ser operado a uma fístula, a mulher e o filho choravam baba e ranho quando o viram ali deitado. Pareciam muito unidos.
Jorge, um jovem jogador de futebol para ser operado a uma peritonite substituiu o João. Cumprimentava-me com um esgar, como se dissesse: "A mim está-me a doer, a ti também?" Não conseguia ver sangue nem agulhas. Estar no hospital aterrorizava-o. Chamava as enfermeiras de cinco em cinco minutos chamando-as de "doutoras" para lhe subirem a cama ou perguntar quando lhe davam de comer. "Você em casa também é assim?", perguntou uma enfermeira, "ouça, vai ter que acalmar..." Ao fim de uns dias, conseguiu perceber que só tinha um doutor, quem eram verdadeiramente as enfermeiras e quem eram as auxiliares. "Senhora auxiliar!", gritava. Uma vez pediu água. "Está aí", respondeu uma, apontando para a torneira na bacia ao seu lado. "Não, água mesmo!", explicou. "Agua engarrafada? Não temos cá disso..."
A figura incontornável do quarto era o senhor Jaime. Tinha 84 anos e estava ali há cinco meses depois de operado a mais que uma oclusão nos intestinos. Tinha o saco a que eu escapara. Em vez de tocar na campainha, batia palmas. Uma vez estava em frente da televisão a bater palmas. "Ouça lá sr. Jaime, está para aí a bater palmas? Quem é que está a ganhar? É algum concurso?", perguntava uma auxiliar. O sr. Jaime era muito grande, pesado e comprido. Eram precisas três pessoas para o colocar na cama. A grande puxadeira era uma auxiliar que já trabalhara sózinha, de noite, num lar para 60 idosos. "Agarre-se-me a mim senhor Jaime, agarre-se-me a mim", dizia, com os braços entrelaçados nas costas do homem.
No hospital, há pequenas vitórias e pequenas derrotas. Na terça-feira de Carnaval disseram-me que já podia receber dieta líquida, sopas e sumos. Resultado: Quarta-feira expeli tudo em golfadas verdes de bílis que as auxiliares e as mulheres da limpeza limparam por umas três vezes com paciência de santas, do chão, da cama, da parede. Voltaram-me a enfiar o tubo pela garganta e a colocar em "dieta zero". Fiquei assim vários dias. Mas já levantava a cabeça, via os prédios do Feijó, as filas de carros em direcção do garrafão da ponte, crianças a brincar no relvado do hospital.
Saí dez dias depois, mais magro e mais fraco, feliz sob o sol primaveril de Março, uma avenida rasgando-me a barriga com uma linha e pontinhos de um lado e do outro, como uma vítima de contacto com a fuselagem de uma nave extraterrestre, os intestinos mais curtos e funcionais. Uma semana mais tarde voltei para retirar os agrafos do ventre. Fiz um esgar de dor ainda não me tinham retirado nenhum agrafo. "Não seja maricas!", disse-me o meu anjo da guarda. Ainda há histórias felizes.

2004-04-27

Ficções do País Obtuso: Deixa o homem mascar à vontade!

O Paulo Portas foi para o Parlamento, em plena cerimónia de comemoração do 25 de Abril, despachar trabalho e a mascar pastilha elástica? Que descaramento...Imagine-se o Salgueiro Maia a tirar macacos do nariz enquanto avançava sobre a Lisboa retro, censurada e amordaçada de Abril de 74. É todo um passado, um património colectivo, que é posto em causa. Eu naquele dia estava exilado em Aveiro porque nasci lá e sempre tive um fascínio por nevoeiros matinais e geada e moliceiros e vibrei com o 25 de Abril! Juro! Já não me lembro que roupa trazia vestida porque na altura eu ainda não podia adivinhar que 30 anos depois aqueles militares com a barba por fazer íam ser tratados por heróis e sobretudo se veriam na obrigação de vestir fato e gravata para entrar na Assembleia da República. Não sei, não sei se naquele dia já um pouco enevoado na memória da minha infância eu estava ou não a mascar chiclete enquanto ouvia o Adriano Correia de Oliveira mas sei que é considerado feio mascar chiclete em cerimónias protocolares. Sabem que mais? Se o Salgueiro Maia estivesse vivo, haveria de dizer: masca a chiclete à vontade, desgraçado, se te dá prazer, masca. A mim, tanto se me dá como se me arrefece, afinal de contas tenho de voltar para Santarém que no meu Ford Cortina que tenho uma sopa de pedra à espera em Almeirim.

Ficções do País Obtuso: Campeons, nós somos campeons!!!

O FC Porto foi campeão mais uma vez, o que acabou, também, por ser comemorado na velha Avenida dos Aliados, em São Mamede de Infesta, em Rio Tinto, na Cedofeita e em casa de...Miguel Sousa Tavares. Estas comemorações entraram já numa rotina tão grande que Jorge Nuno Pinto da Costa já não sabe o que fazer para as tornar mais atraentes. Mudar a cor do clube e das celebrações, nem pensar. Contratar um grupo de brasileiras de um bar de alterne da Lixa poderia ser, claramente, uma solução mas os dirigentes portistas continuam a ser muito secretistas no que respeita à sua vida extra futebol. De modo que ainda se terá pensado, este ano (mais um ano azul e branco...grrrrrr...) em mudar a pronúncia dos festeiros mas foram os próprios linguistas da Universidade do Porto que explicaram a Pinto da Costa e ao sempre bem falante Reinaldo Teles- fala pelos cotovelos- que isso obrigaria a um esforço colectivo impossível de realizar a tempo das comemorações. Se pensarmos o autêntico quebra-cabeças que foi o Porto Capital da Cultura 2001, podemos perceber a monstruosidade da tarefa. Criar-se-iam 10 comissões e contra-comissões, todas com tempo de antena na NTV, para preparar o desígnio de toda uma região metropolitana que hoje se estende das barracas dos pescadores de Matosinhos às vinhas de Valongo.
Tratou-se, no entanto, e roam-se de inveja os centralistas, os que querem levar a Torre dos Clérigos para o Parque das Nações e criar uma rede de franchising de cafés "Cimbalino" na Grande Lisboa e tirar ao Porto o que é do Porto, de uma vitória da democracia. Obrigado Salgueira Maia, que vais ser condecorado pelo Pinto da Costa. Obrigado Otelo, apesar de teres esse ar rude e não falares com o sotaque do norte. Obrigado chaimites, apesar de não terem sido construídos em Ermesinde. E agora dêem-me um fino e tremoços...caracóis? Que nuojo...Você, você também é mooouuro?

2004-04-26

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