estradas perdidas

Atrás de casa, encoberta por tufos de erva daninha, silvas e bidões abandonados, o comboio de janelas iluminadas vinha das Quintãs e silvou depois do túnel em curva, em direcção a Aveiro. Ali ao lado há uma estrada, a minha primeira estrada. Mulheres e homens cruzam-na impelindo teimosamente os pedais das bicicletas. Junto à vitrine de um pronto-a-vestir lê-se "Modas Katita". De uma taberna, saem dois homens que se dirigem para duas Famel-Zundapp. Estrada perdida.

2004-05-31

Canção para a noite

Why Me Lord
de Kris Kristofferson

why me lord?
what have i ever done,
to deserve even one,
of the pleasure i've known,
tell me lord,
what did i ever do,
that was worth lovin' you,
for the kindness you've shown,


lord help me Jesus,
i've wasted it so help me Jesus,
i know what i am,
but now that i know,
that i needed you so help me Jesus,
my souls in your hand,


try me lord,
if you think there's a way,
i can try to repay,
all i've takin' from you,
maybe lord,
i can show someone else,
what i've been through myself,
on my way back to you,


Jesus, my soul's in your hands

A minha versão preferida é a cantada pelo Johnny Cash

Mais perto do Céu

“Aceita um cafézinho?” A relações públicas, andar lento e seguro de quem calcorreia um corredor de um hotel de cinco estrelas à espera de alguma ocorrência ou eventualidade, surpreende-nos no 10º andar, em visita turística. Não pertencemos ali nem estamos propriamente alojados no local. Trata-se, convenhamos, de uma visita rápida e circunstancial a um edíficio respirando luxo e conforto.
“O nosso sistema de exaustão de ar é o melhor, os gases são retirados por um processo super-moderno”. Olhamos à nossa volta e não temos dúvida. Ali, no Memorial, tudo parece executado para que o descanso seja gozado com outro conforto. Pela disposição daqueles hóspedes tão especiais, encerrados em limpas, arejadas e acessíveis compartimentos envidraçados, dir-se-ia que estes são tratados com o máximo das comodidades.
De longe, visto de perfil, com os seus dez andares marcados por varandas, o Memorial só pode parecer um hotel a qualquer olhar incauto. À noite, iluminados os varandins, chamar-lhe-íamos o Santos Palace, tão imponente parece aquela hipotética estrutura hoteleira. A Memorial é na realidade um grande, elevado e muito moderno cemitério.
Como explica o texto promocional: “O livre arbítrio e sermos conscientes de que não somos eternos nesta vida são as razões que nos diferenciam das demais espécies que habitam o planeta. Esta consciência e este livre arbítrio permitem-nos hoje escolher o lugar de morada eterna que um dia, inexorável e inevitavelmente, devermos ocupar. Este lugar, hoje escolhido, pode ser aprazível, belo, de imensa paz”.
O cliente que nos acompanha quer saber como está o seu futuro habitáculo. “ Nós já comprámos o nosso lugar aqui, eu e minha esposa. Não tem lugar melhor. Viúva quer visitar cemitério, é assaltada. Aqui tem paz, tem higiene, segurança”. A relações públicas desce connosco de elevador enquanto vai elogiando novamente o sistema de ventilação e comprazendo-se com o facto de cada vez mais santistas estejam a aderir ao Memorial. “E concerto, tem tido concerto ultimamente?”
O jardim do rés-do-chão é palco de muito celestiais concertos, com coros enchendo os dez andares de música adequada à paz que se vive no local. “Já vim assistir a pelo menos, “assevera o entusiasta cliente e cicerone, “a um concerto. Cê não imagina a paz e o ambiente, cara, não tem maior tranquilidade”.
Encorajada pelo entusiasmo do cliente e pela presença lusitana, a relações públicas convida-nos a descer até à moderna secretaria. “E quanto a preços, minha senhora, tudo se mantem?”, pergunta o cliente. Ela já procura uma significativa e colorida brochura, onde a Memorial Necrópole Ecuménica é descrita num discurso digno do folheto de uma agência turística.
“Para o último adeus, dispõe de salas amplas com todo conforto necessário aos que ali comparecem”, lê-se junto a uma elucidativa fotografia a cores do salão dos velórios. À noção de edifício inteligente, a Memorial contrapõe a de cemitério inteligente: “Planejamento inteligente, atendendo a todas as normas de higiene, segurança e prevenção da natureza”.
O último momento é tão especial que merece um atendimento à prova de qualquer falha: “Serviços perfeitos de segurança e de informação, proporcionam os mais altos padrões possíveis de conforto e comodidade, tão necessários em momentos como este”.
Para fim de visita, fui convidado a visitar em primeira mão as obras dos dois novos crematórios, construídos, segundo as informações que recolhemos no local, com tudo o que há de melhor em nova tecnologia.
O sucesso do Memorial é tanto que, numa das extremidades do grande edifício crescem já mais andares acima do décimo, numa procura incessante de aproximação ao céu. Até uma poetisa, Maria Araújo Barros de Sá e Silva, dedicou o poema “Saudação ao Memorial” à obra que, devido à sua altura, está no Guiness Book como a necrópole mais alta do mundo: “Belo recanto que me faz sonhar/ banhado de sol, de luz do luar/ Pertinho do mar, jardins dando flores/ Romanticamente tocando a montanha/ Beleza tamanha e de mil primores”.


Memorial
Cemitério em altura
Santos
Brasil

2004-05-30

"Amanhã não fazes os trabalhos de casa"

Deviam estar uns 20 graus. Perpassava pelo Parque da Bela Vista uma atmosfera de festa para toda a família. Namorados sentados junto a redes penduradas nas árvores. Sons, luzes e cores pairando sobre o anfiteatro verde que todos ou quase todos desconhecíamos. Jovens a passar por cima das nossas cabeças a fazer mais um slide enquanto alguém cantava no palco. Outros andavam de skate ao som do Peter Gabriel. Bem Harper pôde cantar “Waiting for an angel” e comentar que fôra como se estivesse na sua sala de estar. Pela uma da manhã, um casal cobria os filhos adormecidos junto ao palco. Um pai apareceu num dos caminhos asfaltados que saem do arvoredo, com a filha debaixo do braço: “Amanhã, não vais precisar de fazer os trabalhos de casa…”

Parque da Bela Vista
Lisboa
Noite de 29/5/2004

2004-05-27

Já não há autoridade

Hoje quando cheguei ao trabalho contaram-me que ontem à noite um indivíduo alegadamente adepto do Futebol Clube do Porto, atravessou a Avenida Fontes Pereira de Melo todo nú e carregando uma grade de cerveja. É assim? Já não há polícia, já não há autoridade? Esses tipos vêem lá da Abkazia com os seus rituais de celebração e fazem o que querem? A culpa é daqueles teóricos da tolerância que acham que Lisboa deve ser uma cidade aberta a todo o tipo de imigrantes. O Serviço de Estrangeiros o que tinha de fazer era pegar nesse indivíduo, levá-lo até à fronteira, ali por bandas de Grijó e devolvê-lo à terra dele. Ai...que dor de cotovelo...

2004-05-25

"Os maus também têm festas"

Muitos europeus se questionam sobre o porquê do sucesso norte-americano. A América vai em frente, com pequenas recessões, é certo, devido ao pragmatismo optimista de uma parte substancial dos seus cidadãos. Simplicidade, é a palavra chave. Questionado acerca do bombardeamento a uma cerimónia de casamento em pleno deserto iraquiano, que provocou a morte a 41 pessoas, o General Mark Kimmit teve esta explicação simplista e pragmática: "Os maus também têm festas". O General Mark Kimmit cresceu a ver filmes do John Waynne. Não há volta a dar-lhe.

2004-05-24

Go rest high on that mountain

Go rest high on that mountain
de Vince Gill (clicar no título para obter informação sobre o autor)

I know your life on earth was troubled
And only you could know the pain
You weren't afraid to face the devil
You were no stranger to the rain

Go rest high on that mountain
Son, your work on earth is done
Go to heaven a shoutin'
Love for the Father and the Son

Oh, how we cried the day you left us
We gathered round your grave to grieve
I wish I could see the angels faces
When they hear your sweet voice sing

Go rest high on that mountain
Son, your work on earth is done
Go to heaven a shoutin'
Love for the Father and the Son

Go rest high on that mountain
Son, your work on earth is done
Go to heaven a shoutin'
Love for the Father and the Son

Go to heaven a shoutin'
Love for the Father and the Son


2004-05-23

Por razões psicológicas...

O taxista vai ficar à minha espera. É um ex-camionista dos TIR que abandonou a linha da Escandinávia em Agosto. "Por razões psicológicas, em Agosto. Não aguentava mais. Andei lá seis anos. Não aguentava mais. Chegava a fazer 36 horas de barco para a Finlândia e depois ía até lá acima, para lá do Círculo Polar Arctico. O médico aconselhou-me a deixar aquilo. Estive doente dois meses. Quer que pare aonde? Quer dizer, eu paro, você vai fazer a entrevista e eu espero aqui por si? Olha, uma petisqueira, é mesmo o que eu estava a precisar".
A Avenida 23 de Julho, que sobe da Cova da Piedade para o Laranjeiro e dali para a Cruz de Pau, é agora um estaleiro poeirento por causa das obras do Metro do Sul do Tejo. Há cilindros, máquinas, vedações, operários de coletes coloridos, náufragos suburbanos à espera de autocarros no meio do trânsito, do pó, da confusão. Os comerciantes querem-me ali porque o negócio está a sofrer com as obras. Agarram-me o braço, levam-me de loja a loja, fazem contas...um sofreu 70 por cento de prejuízo, outro 80 por cento, cargas e descargas ali é mentira. Dizem "venha cá", "sente-se aqui", "veja lá isto", "olhe só como isto ficou..." Os rostos desfilam à minha frente. "E este traço contínuo, este traço contínuo..." E depois, o trânsito, caótico. Tirem-me daqui, digo para comigo. "Mas há fotos do último atropelamento", diz alguém. Sou conduzido até ao escritório de uma loja de pneus. Ou é de móveis? Onde estou eu? "E esta era a miúda. Veja, veja como ela ficou..." Uma criança, não mais que 15, 16 anos. Vejo uma mochila no chão, vejo-lhe o blusão de colegial, as pastas no asfalto, um fio de sangue correndo da testa e descendo até ao pescoço. "A mãe vive aqui à frente, quer entrevistar a mãe?" Não, não quero entrevistar a mãe. " E o pai? Deixe-me ver se tenho o telemóvel do pai da miúda. Se não tiver aqui, ligo-lhe para o seu telemóvel e dou-lhe o telemóvel do pai da miúda..." Eu não tenho telemóvel. "Ah, está bem. Rosa? Rosa!!! Rosa sabes quando é que a miúda morreu atropelada aqui à frente? Foi uma sexta-feira? Foi uma sexta, há quinze dias. Chamava-se Elsa? Elsa? Bom, o pai dá-lhe as informações todas. Veja só, 16 anos..." A foto continua ali à frente. A mesa circular tem um jarro de flores e canetas e dossiers da loja mas é como se não existisse mais nada. A foto bóia à superfície de uma bacia cheia de água, lá dentro está a Elsa ou Paula, a Maria...ía a passar por trás do autocarro, era meio-dia, atravessou onde não devia mas também não puseram lá uma passadeira. Uma criança, cabelo castanho escuro, agachada no asfalto como que a dormir. Apetece afagar-lhe o cabelo e limpar aquele fio de sangue. Apetece fugir. Fazer como o taxista fez em relação à linha TIR da Finlândia. Por razões psicológicas...

2004-05-20

Across The Border
de Bruce Springsteen

(Dedicada a todos os clandestinos, ilegais e gente sem dinheiro e sem comida que tenta a sua sorte no NORTE. Venham todos!)

Tonight my bag is packed
Tomorrow I'll walk these tracks
That will lead me across the border

Tomorrow my love and I
Will sleep 'neath auburn skies
Somewhere across the border

We'll leave behind, my dear
The pain and sadness we found here
And we'll drink from the Bravo's muddy water

Where the sky grows gray and wide
We'll meet on the other side
There across the border

For you I'll build a house
High upon a grassy hill
Somewhere across the border

Where pain and memory
Pain and memory have been stilled
There across the border

And sweet blossoms fill the air
Pastures of gold and green
Roll down into cool clear waters

And in your 'neath open skies
I'll kiss the sorrow from you eyes
There across the border

Tonight we'll sing the songs
I'll dream of you, my corazon
And tomorrow my heart will be strong

And may the saints' blessing and grace
Carry me safely into your arms
There across the border

For what are we
Without hope in our hearts
That someday we'll drink from God's blessed waters

And eat the fruit from the vine
I know love and fortune will be mine
Somewhere across the border

Que chatice...parem de caír!

No mundo ocidental é assim. Os ilegais irrompem de dentro de camiões de carga, das tampas dos esgotos, das vagas do mar de Tarifa, debaixo de autocarros excursionistas. Agora até nos caiem do céu, como aconteceu terça-feira na quinta do senhor Sequeira, na Charneca da Caparica. Metem-se nos trens de aterragem dos aviões e tentam entrar. Já sabem que não podem, porque é que tentam? Com tanta ajuda humanitária...os camiões e camiões que enviamos todos os anos para África e eles sempre a quererem entrar. Querem o que nós temos mas nem todos podem ter DVD's, video, televisão a cores, dois pratos de comida por dia, cama e roupa lavada com dois lençois e almofada, querem as nossas mulheres, os nossos centros comerciais, as nossas coca-colas e as nossas pipocas. Agora caiem do céu...E amanhã, como será? Quem indemniza o senhor Sequeira, que ficou com a sua latada primeiro-mundista danificada? Que chatice...nós aqui tão sossegados...tão brancos, tão imaculados, limpos...dá-me mais um Ferrer Rocher...

2004-05-18

Canção do dia

Como Eu Quero
da Banda Kid Abelha

Diz pra eu ficar muda

Faz cara de mistério

Tira essa bermuda

Que eu quero você sério

Dramas do sucesso

Mundo particular

Solos de guitarra

Não vão me conquistar

Eu quero você

Como eu quero

O que você precisa

É de um retoque total

Vou transformar o seu

Rascunho em arte final

Agora não tem jeito

Cê tá numa cilada

Cada um por si

Você por mim mais nada

Longe do meu domínio

Cê vai de mal a pior

Vem que eu te ensino

Como ser bem melhor

Saudades do Brasil

Para chegar ao mar, preciso atravessar a mata de Santo António. Muita gente diz que o caminho da mata é perigoso à noite. Aos 21, 22 graus da noite de ontem, a mata de Santo António da Caparica era um apelo irresistível. Passei com o Grishka, o meu husky siberiano de pêlo castanho e branco junto à vedação do Parque de Campismo da Orbitur. Pude ver um casal de jovens alemães a prepararem o jantar junto a um igloo. A família disfuncional que vive na esquina do camping com a mata, já junto ao parque dos escuteiros, mantinha a chinfrineira do costume. No Inverno, entre a névoa, o frio e a chuva, a única luz e som disponível vem daquela roullote com um avançado onde colocaram uma bandeira de Portugal, caixas de cerveja abandonadas e onde o som ambiente varia entre Xutos e Pontapés e rock dos anos 80.
Mais adiante, aproveitei para fazer o número de sempre junto dos cães dos escuteiros. São três, dois dóceis e um branco e preto, que odeia o meu husky e castiga com dentadas malévolas quem, dos outros dois, se atreva a brincar com o Grishka. Como aquela zona à noite está sempre vazia e há pouca distracção, aproveito para assobiar, o que atrai imediatamente o Pirata. Chamam-lhe assim por causa do olho preto que parece a pala do Barba Azul. O Pirata vem rapidamente a correr na escuridão e aparece, para minha diversão e contentamento, a ladrar furiosamente junto aos portões dos Escuteiros. Se eu circular por perto com o Grishka e os outros dois cães vierem brincar com ele, arriscar-se-ão a valentes dentadas do Pirata quando regressarem ao lado de lá. Se eu soltar o Grishka, aí sim, terei alguns minutos de espectáculo, com o focinho e os dentes do Pirata a tentarem atingir o meu cão e este a ladrar como sabe…é cachorro…Detesto o Pirata, o Pirata é mau, tem maus instintos. Mas nunca conseguiu morder o meu cão.
Entreguei-me à escuridão da noite em direcção ao aglomerado de barracas de tijolo e madeira a que chamam Bairro da Mata. Ao contrário de vozes avisadas que falam do bairro como um antro de crime, droga e transgressão, sempre me senti atraído por ele, pelos cheiros a carne a assar, o fumo a sair das barracas, o som da música africana, as gargalhadas das angolanas. Quando um dia, um grupo de angolanos ergueu um bar com quatro paredes de tijolo e duas palmeiras à frente- o sinal em qualquer bairro do género de que se trata de um bar- e colocou uma mesa e um sofá velho como esplanada, apeteceu-me saltar do mundo de cá, dos brancos e ir para lá, para a África na Caparica e confraternizar.
Gosto da quizomba que sai das janelas pequeninas das barracas, gosto de ver as angolanas vestidas com cores garridas e roupas irrepreensíveis a sair do bairro às 7h00 ou 8h00 da manhã para o trabalho em Lisboa e gosto das crianças, um rancho delas, muitas com tranças na cabeça, que brincam com pneus ou à apanhada entre o lixo disperso pela mata. Sempre que passo com o Grishka, junta-se um rancho de crianças a gritar “vem aí o lobo, olha o lobo..ele morde?” Tenho de o segurar com firmeza enquanto é engolido pelas crianças a passar as mãos pequenas e negras pelo dorso castanho e branco do animal.
Ontem à noite, quando passei, o bairro era um dédalo de vozes, luzinhas e música. O calor trouxe consigo o cheiro a lixo. Passei rapidamente em direcção ao mar, subi as escadas junto ao Restaurante Marcelino, que está a renascer das cinzas depois da destruição pelas vagas em Outubro e cheirei as ondas. O lado de lá, Algés, Paço D’Arcos, Oeiras, era uma mar de luzes a tremeluzir na noite. Um avião fazia vruuuuuuummmm em direcção a Lisboa. Aquela hora, o paredão é o passeio dos amantes. O perfil de um par de namorados num abraço-beijo eterno surgiu-me à frente, no escuro, as ondas macias e doces de uma noite morna, diferente.
E foi então que de, repente, surgiu o Brasil, entre a calmaria das ondas, entre o bafo quente que vinha do mar. Lembrei Maceió, lembrei de São Luís do Maranhão, lembrei os bares de praia abertos 24 horas, alguém tocando violão enquanto petiscamos um tira gosto e bebemos uma Brahma gelada, lembrei do sertão do Pernambuco, do Tati, da Mana, da Teka, do doido do Carlinhos puxando as meninas para dançar no forró de Tabira, lembrei de São José do Egipto, Paraíba, dos repentistas, lembrei da Rosie, da Pousada da Renata, dos Lençóis Maranhenses, de seu Alfredo de Alta Floresta, Mato Grosso e do seu humor paranaense. Senti saudade da selva, dos mosquitos, do medo de onça, da excitação de ver à frente uma jararaca mata-cavalo, do ruído infernal da noite no meio do mato, de viajar de voadeira, de tomar banho em cachoeira, de sentir que o Brasil te ama e te recebe de braços abertos. De repente, entre a penumbra húmida da Caparica, vi o Tati, segurando mais uma lata de cachaça “Pitú”, doido de contente quando reapareci ao fim de dois anos e sem avisar no fim do mundo de Tabira, Alto Sertão do Pernambuco: “Poxa bicho, que alegria Nuno, eu não acredito, você aqui? Que alegria…portuga…Erenilde, traz cerveja p’ro Nuno, tu lembra do Nuno?”

2004-05-17

Canção do dia

I'll Be Here In The Morning

de Townes Van Zandt

There's no stronger wind than the one that blows
down a lonesome railroad line
No prettier sight than looking back
on a town you left behind
There is nothin' that's as real
as a love that's in my mind


Close your eyes
I'll be here in the morning
close your eyes
I'll be here for a while


There's lots of things along the road
I'd surely like to see
I'd like to lean into the wind
and tell myself I'm free
but your softest whisper's louder
than the highways call to me


All the mountains and the rivers
and the valleys can't compare
to your blue lit dancin' eyes
and yellow shining hair
I could never hit the open road
and leave you layin' there


Lay your head back easy, love,
close your cryin' eyes
I'll be layin' here beside you
when the sun comes on the rise
I'll stay as long as the cuckoo wails
and the lonesome bluejay cries.

Também gosto muita da versão do Calvin Russell no álbum "Texas Radio"

2004-05-16

Olha, o melhor do mundo perdeu...

As imagens inebriantes de benfiquistas a festejar na Avenida dos Aliados vão-me fazer dormir melhor que quando despejava duas garrafas de tinto numa noite. Afinal de contas, não é todos os dias que se ganha aos melhores da Europa e do Mundo e quiçá do Universo. Iiiiiihhhh... benfiquinha, ganhaste aos reis do universo...

Keep allways on the sunny side

Bom, hoje é dia de Benfica-Porto e de tristeza pela morte do Bruno Baião. Mas sempre, com nuvens ou sem nuvens no céu, há valores a preservar e a tentar manter teimosamente. Keep allways on the sunny side e sejam felizes!

Keep On The Sunny Side
da The Carter Family
composta por A.P. Carter

There's a dark & a troubled side of life
There's a bright, there's a sunny side, too
Tho' we meet with the darkness and strife
The sunny side we also may view

Keep on the sunny side, always on the sunny side,
Keep on the sunny side of life
It will help us ev'ry day,
It will brighten all the way
If we'll keep on the sunny side of life


The storm and its fury broke today,
Crushing hopes that we cherish so dear;
Clouds and storms will, in time, pass away
The sun again will shine bright and clear.

Keep on the sunny side, always on the sunny side,
Keep on the sunny side of life
It will help us ev'ry day,
It will brighten all the way
If we'll keep on the sunny side of life

Let us greet with the song of hope each day
Tho' the moment be cloudy or fair
Let us trust in our Saviour away
Who keepeth everyone in His care

Keep on the sunny side, always on the sunny side,
Keep on the sunny side of life
It will help us ev'ry day,
It will brighten all the way
If we'll keep on the sunny side of life


2004-05-15

Ardam tudo!

Na vida lidamos com todo o tipo de pessoas. Na nossa rua também. Vivo há praticamente 12 anos na mesma rua. Os vizinhos e a sua tipologia varia conforme as estações do ano, uma vez que se trata de Santo António da Caparica. De Inverno e na Primavera, somos poucos vizinhos. Há os que nunca cumprimentam, os que dizem “olá Nuno, então o Benfica?”, há os brasileiros-mineiros que circulam entre os seus apartamentos e a cabine telefónica e que formam uma bolha social à parte porque a Caparica também gosta de os ver assim, à parte. Depois, vem o Verão e mais vizinhos. As mudanças começam agora, é certo, em fins de Maio, início de Junho mas atingirão o seu clímax em Agosto. É nesse mês que descubro que todos aqueles lugares horrendos que andei a tentar esquecer que existem durante o ano, afinal, existem mesmo e se transportam de armas e bagagens para a Caparica: sei lá, Paio Pires, Corroios, Torre da Marinha...No passado mês de Agosto- o primeiro de há vários anos que passei a trabalhar-a minha capacidade de tolerância e fraternidade para com os outros foi duramente posta à prova, entre os tradicionais gritos de “António, olha a menina!”, famílias inteiras desfilando à porta do prédio de chapéus de Sol debaixo do ombro em direcção a uma praia cuja areia o mar varreu e buzinadelas e travagens incessantes na rotunda mesmo por baixo da minha varanda. A tudo, juro pela minha Mãe, respondi com um estranho e nada habitual fair-play. Até que num daqueles dias de 38 graus e o país em chamas em directo na televisão, vi uma família inteira estacionar uma grande carrinha branca no meio da seca e suja Mata de Santo António, abrir espaço entre a caruma e criar ali mesmo uma fogueira entre os pinheiros secos, as pinhas secas, os cacos de vidro, os sacos de plástico vazios e a metros da vedação do parque de campismo da Orbitur. Disse para comigo: “E porque não? Ardam tudo! Mação não está a arder, Oleiros também? Então...vamos a isso, vamos lá pegar fogo ao país! Pode ser que lá em cima, dos satélites, se veja uma luzinha e um fumo a dispersar pela Península Ibérica e alguém se lembre que este asilo à beira mar plantado existe...”

2004-05-13

Canção do dia

When You Need Me
de Bruce Springsteen

When you need me call my name
'Cause without you my life just wouldn't be the same
If you want me come sunny skies or rain
When you need me just call my name

If you miss me, I'll be there
To brush the sunlight from your hair
I'll be there to guide you when trouble walks beside you
If you need me I'll be there
And when this dirty world has been cold to you
I got two strong arms waitin' to hold you
And when those mean days come along
We'll stand together and we'll take 'em on
So if you need me just call my name

When you need me call my name
'Cause without you my life just isn't the same
'Cause when this world kicked me around
You picked me up off the ground
So if you need me I'll be there

Marluce

Aquele posto de gasolina em Fortaleza, Ceará, vive de seres mal amanhados e gordos que saem num pulo dos camiões e de figuras esguias e sedutoras que circulam por ali como abelhas ao mel. São as “meninas do posto”, a maioria muito jovens, sempre rodeadas de três ou quatro homens que conversam sobre tudo, num furor de desejo que seja capaz de as atrair para a sua cabine solitária.
Norberto, o camionista, está desiludido. Ester, a morena, um jovem de silhueta generosa, que um dia ele atraíu para a cabine do camião e com quem não conseguiu “transar” porque cheirava a outros homens, conversa com um japonês. Norberto olha primeiro para Ester, ela sorri e comenta sem esconder o desprezo: “um japonês”.
Norberto, que conhece todas as “meninas do posto” mete conversa com a “baixinha”, uma morena lânguida, de anel no dedo: “Cê é casada? Onde está seu homem? Ele sabe que cê ‘tá aqui?” A “baixinha” deixa Norberto acariciar os seus cabelos encaracolados, sorri, espera que o camionista a queira para essa noite. Afinal, relativamente jovem e charmoso, Norberto é bem diferente desses “caras nojentos” que não quer conversa, só sexo rápido na cabine.
Foi então que surgiu Marluce, a loira Marluce, t-shirt, calça branca, segurando os pelos do peito nú de Norberto como uma salvação naquele posto de almas perdidas e longe de Deus. Norberto lembra-se de Marluce. “Uma noite ela não tinha onde dormir. Bateu na porta do meu camião e perguntou se podia dormir no meu camião. Eu disse: “Lógico, deita aí”. Aí, ela dormiu comigo toda a noite, não fiz nada com ela, apenas dormimos, eu acariciando seus cabelos. Aí, ela nunca mais esqueceu”.
Agora, Marluce senta-se no assento do motorista do camião de Norberto e desenrola a sua história, mãe aos 15 anos, hoje com 25 e cinco filhos, vivendo da prostituição junto dos camionistas para sustentar a prole. “Eu cobro o que quero, entendeu, eu cobro 20, 30, 50 reais, se eu gosto de um cara ou não. Agora, Norberto, eu faço o que ele quiser e não cobro. Norberto é um cara legal. Quando ele me deixou dormir no camião, eu fiquei sempre pensando nele. Você aqui conhece muito cara mas Norberto é diferente, só quer conversar com você, ajuda você”.
Durante quatro dias, Marluce não parou de pensar no camionista Norberto. Nunca mais ouviu falar dele mas nunca lhe perdoou o facto de ele ter levado Ester para o camião e não a ter levado a ela. “Eu quando me apaixono, apaixono mesmo. Norberto, você é diferente”.
A meio da conversa a altas horas na cabine do camião, surge “Baixinha”, após uma rápida “transa” num camião anónimo. “Cê tem papel? Me arruma algum?” Para lá de satisfazerem vários camionistas por noite, as “meninas do posto” não podem limpar-se na casa de banho, quanto mais lavar-se. “O vigilante não deixa, a gente tem de mijar aí, junto aos camiões”
A dado momento, Marluce precisa de urinar. Tem de descer os degraus do camião e fazer ali mesmo. “Vida triste, não é?” Qual? “A de menina de programa, caramba. Estou devendo dinheiro a todo o mundo, ainda não paguei este mês à menina que fica com meus filhos e essa danada vai contar coisa de mim aos vizinhos, sabe? Estou precisando de dinheiro demais”.
Uma amiga de Marluce, uma falsa loira, surge de vestido preto e rastejante, reconhecendo o amigo Norberto, tentando vender umas bonecas e uns pequeninos bonecos para colar no vidro do camião. “Cê não quer, para seus filhos, vá, eu faço tudo por bom preço”.
Marluce está exausta, tomou”rebite” para se poder manter acordada até às três da manhã mas o efeito foi o contrário. Deita a cabeça no volante e deixa-se dormir. Norberto volta. Marluce queria tê-lo para a noite mas Norberto não quer. Então, Marluce pede-lhe dinheiro para regressar de moto-táxi à casa de duas assoalhadas que ocupa com os quatro filhos. Ele recusa. Marluce vai embora. A última imagem que tenho dela é sentada encostada a uma árvore onde, durante toda a noite, circulam camionistas.
“Cê não tem pena dessa vagabunda. Se ela pudesse, pegava seu dinheiro e sumia. Amanhã, ela está se enchendo de cerveja na Praia do Futuro, essas meninas são umas vagabundas”, explica Norberto, “não é para ter pena não”. Mas eu tenho pena. Ainda corro a cortina do camião, Norberto a ressonar e avisto uma última vez Marluce, um camionista rondando, ela provavelmente pensando em Norberto.

2004-05-11

Canção do dia

I envy the wind
de Lucinda Williams

I envy the wind
That whispers in your ear
That howls through the winter
That freezes your fingers
That moves through your hair
And cracks your lips
And chills you to the bone
I envy the wind

I envy the rain
That falls on your face
That wets your eyelashes
And dampens your skin
And touches your tongue
And soaks through your shirt
And drips down your back
I envy the rain

I envy the sun
That brightens your summer
That warms your body
And holds you in her heat
And makes your days longer
And makes you hot
And makes you sweat
I envy the sun
I envy the wind, I envy the rain, I envy the sun, I envy the wind

Ramal de Moura

No meio da planície amarela, uma mancha esverdeada de oliveiras lá ao fundo, jaz uma estação ferroviária abandonada. Um grupo de andorinhas chilreia e brinca em cima de um fio de electricidade. Ervas altas amareladas invadem os carris e a plataforma. Na gare, há vestígios de uma fogueira. O vento sopra por entre as frinchas da porta de madeira de um armazém. No meio do nada, um hino à desolação há um relógio, enferrujado, que ficou para sempre com o ponteiro nas oito horas. O vento sopra as folhas de uma laranjeira, agita um outro pé de vinha e sacode as placas de zinco meio soltas do armazém. Há dez anos passava ali um comboio. Dir-se-ia o cenário de um filme de Wim Wenders.

2004-05-10

Canção do dia

Lost Highway
de Hank Williams


I'm a rollin' stone all alone and lost

For a life of sin I have paid the cost

When I pass by all the people say

There goes another guy down the lost highway

Just a deck of cards and a jug of wine

And a woman's lies makes a life like mine

O the day we met, I went astray

I started rolling down that lost highway
I was just a lad, nearly 22

Neither good nor bad, just a kid like you

And now I'm lost, too late to pray

Lord I take a cost, on the lost highway

Now boys don't start your ramblin' round

On the road of sin or you’ll be sorrow bound

Take my advice or you'll curse the day

You started rollin' down that lost highway

Melancolia pura ser lisboeta

É melancolia pura ser lisboeta, mesmo que por adopção como é o meu caso. Das ruelas estreitas atravessadas pelos eléctricos amarelos, soa de vez em quando um fadinho, a voz de uma mulher que estende a roupa e diz: "Oh António! oh António! Raios me partam o miúdo que nunca mais aparece!" E ouve-se a voz da vizinha das águas furtadas, lá em cima: "O António só te dá dores de cabeça, Maria. Mais valia entregá-lo de vez à mãe, ela que o crie!" A Maria segura uma mola da roupa entre os dentes, retira a mola e coloca-a no lençol branco. Só depois responde: "Mete-te na tua vida, Adelaide. Olha, o teu Anselmo está na taberna desde as 10h00 da manhã..." A vizinha das águas furtadas fecha a janela com estrondo. Ouve-se uma guitarrada ao fundo da calçada. Um velho dá três bengaladas secas na porta de ferro da entrada do eléctrico. Tudo em vão. "Ti Chico, já sabe que a entrada é lá em baixo, não posso apanhar clientes a meio do caminho!", diz o condutor, as mãos atentas à manivela. O eléctrico sobe, a rua cala-se, um canário agita-se numa pequena gaiola à passagem do carro. Uma nuvem escura em forma de abóboda esconde o sol que há segundos alumiara a calçada. Maria prescruta os ares, franze o nariz e a testa e pergunta-se se terá valido a pena estender o lençol. "Merda de tempo, sempre a mudar, tanto faz sol como faz chuva". Um vento frio, enregelado e húmido sobe lá de baixo do Tejo, ventilado pelo corredor formado pelas casas enfileiradas na colina. Ali perto, no miradouro de Santa Catarina, dois jovens amantes enrolam os corpos mais um pouco um no outro. Ela puxa o cachecol para a esquerda do pescoço e pergunta ao namorado, as bordas do casaco puxadas para cima: "Oh Manel, e se fossemos embora? Tá tanto frio..." Ele não responde. Sabe que a nuvem é passageira como aquele momento frágil e único que o mantem ali com a ex-namorada do melhor amigo. Mais um cacilheiro deixa o ancoradouro de Cacilhas e faz-se a Lisboa. Uma ponta de Sol lambe, timidamente o Cristo-Rei, lá na outra banda. Aos poucos, a luz estende-se, uma mancha de azeite morna e primaveril, sobre a margem sul, o elevador de Almada, a torre da Margueira. Não tarda nada iluminará aquele cacilheiro. "Vês", diz ele, "era uma nuvem, já passou...olha ali , o Sol já está ali nos telhados do bairro da Bica". Ela não parece muito impressionada. Olha Manel olhos nos olhos, inquieta, o cachecol encobrindo-lhe os lábios, as mãos enfiadas no casaco: "Tens a certeza de não estamos a fazer nada de errado? Estou com tanta pena do Vasco. E se ele sabe que eu ando contigo?" Um raio gordo de sol ilumina por fim o rosto de Manuel, que ri. Falta-lhe um dente da frente. Passa a mão direita pelos cabelos pretos e emaranhados. "O Vasco? Já está com outra nesta altura do campeonato. Vá, dá-me um beijo".
De uma janela de uma moradia vizinha, uma idosa espreita por entre o cortinado acinzentado. É a Dona Vitória, tem 78 anos e é viúva do senhor Marcelino, que tinha aquela mercearia nos fundos da Rua do Poços dos Negros. O Marcelino morreu há dez anos de uma estúpida queda nos degraus da moradia. A Dona Vitória vive só. Quiseram oferecer-lhe um gato mas ela não gosta do cheiro dos gatos. Fecha a cortina e liga a televisão. Um cantor de cabelo abrilhantado a gel, canta: "Lisboa, Lisboa, Lisboa mulher, Lisboa fadista..."
Oh Lisboa, Lisboa é pura melancolia…

2004-05-09

Brasileiro na Costa

1 “A Costa está cheia de brasileiros”
2 “Pois está”
1“E o pior é que eles não nos percebem. Você vai-lhes dizer uma coisa e eles não entendem o que você diz”
O homem levanta ligeiramente a mão direita e bebe mais um pouco de moscatel.
1 “Para que é que os deixam entrar, se nem sabem falar?”
2 “É isso, deixam entrar toda a gente”
O copo largo do moscatel esvazia-se num trago.
1 “Brasileiros e brasileiras...”
2 “Isso...olha o tempo hein, quem havia de dizer que íamos ter chuva...às 7h00 da manhã quando fui passear o meu cão, estava um sol...”
O copo permanece vazio mas o homem não parece interessado em largá-lo. O braço direito continua estendido na sua direcção. Entre ele e o copo, não parece existir mais nada.
1 “Ihhhh, tenho de ir ali fechar a porta, senão a chuva entra-me aqui dentro...”
2 “Brasileiros”...
1 “E brasileiras...”
O homem levanta a cabeça uns centímetros e mira o outro por detrás do balcão. Não fossem as dioptrias e vir-se-iam os olhos faiscar.
2 “Quer a continha?”
1 “hum...dê-me mais um moscatel...”
Nesse instante, correndo a abrigar-se da chuva entra Geraldo, mineiro de Governador Valadares.
3 “E aí, seu Jorge, tudo bem?
2 “Oh cara, então disseste que vinhas cá ontem, não vieste...tinha aqui aquela coisa para te dar. E o outro cara que mora lá com vocês, aquele gordo, de bigode?”
3 “Uh seu Jorge, isso é cara ruim...cê não vai ver ele por aqui de novo...”
2 “O quê? Foi-se embora para o Brasil?”
3 “O cara pediu 500 euro emprestados a um amigo meu e sumiu para o Brasil...Cê sabe, seu Jorge, tem cara legal e tem cara ruim. Cê tem que ‘tar de olho, seu Jorge, se não qualquer dia esses que estão bebendo aqui, não vão pagar não...Eu já lhe avisei...”
2 “O Sávio?”
3 “O Sávio, o Dércio e a turma dele, esse pessoal tá tudo barrado lá no centro da Costa. Por isso, ‘tão bebendo aqui seu Jorge...o senhor deveria tomar cuidado...”
O homem termina de ruminar por cima do seu segundo moscatel.
1 “Você ouviu falar do apartamento que assaltaram na semana passada ali à frente?
2 “É o apartamento de um vizinho meu. Bem que o avisei para reforçar a porta e a fechadura. Não me deu ouvidos”
1 “O problema não é da porta nem da fechadura, o problema é que você já não sabe quem anda por aqui...Faça-me a conta.”
3 “Eh....” Geraldo abana a cabeça em sinal de aprovação, “tem muita gente ruim no mundo mesmo...Seu Jorge, me dê um Sagres...Rapaz, quem assalta assim apartamento não pode ser boa gente...”
1 “Dois e quarenta e cinco...vou ter que lhe dar o troco em moedas pequenas...”
2 “Deixam entrar aqui toda a gente...”
O homem coloca as moedas rapidamente no porta-moedas e sai porta fora, mais as suas dioptrias e o mau humor.
3 “Ihhh..que bicho mordeu esse cara, seu Jorge?
2 “É do tempo, da chuva...o mau tempo faz mal à cabeça de algumas pessoas...”
3 “O pessoal por aqui é meio desconfiado, não é não?”
2 “É do tempo. Dá-lhes um dia de sol e já andam todos contentes. Não ligues Geraldo”.
3 “Cara esquisito...”
2 “Vá, conta aqui...e a Alcione?”
3 “Ihhh seu Jorge, que é que cê quer com a Alcione seu Jorge?”

2004-05-08

Sk8er Boi, dedicado ao meu filho mais novo

"Sk8er Boi"
de Avril Lavigne

He was a boy
She was a girl
Can i make it any more obvious
He was a punk
She did ballet
What more can i say
He wanted her
She'd never tell secretly she wanted him as well
But all of her friends
Stuck up their nose
They had a problem with his baggy clothes

He was a skater boy
She said see you later boy
He wasn't good enough for her
She had a pretty face
But her head was up in space
She needed to come back down to earth

5 years from now
She sits at home
Feeding the baby she's all alone
She turns on tv
Guess who she sees
Skater boy rockin up MTV
She calls up her friends
They already know
And they've all got
Tickets to see his show
She tags along
Stands in the crowd
Looks up at the man that she turned down

He was a skater boy
She said see you later boy
He wasn't good enough for her
Now he's a super star
Slamming on his guitar
Does your pretty face see what he's worth?

2004-05-07

Parabéns Gonçalo!

Ontem, o Gonçalo, o meu filho mais novo, fez 13 anos. Sim, passámos o dia a ouvir Avril Lavigne, a comer pizza e a beber Ice Tea Lipton. A mãe estava no estrangeiro por isso tirei uma folga para ficar com ele. À tarde, fomos gastar uns euros no salão de jogos da Rua dos Pescadores, na Costa da Caparica. Aos dias da semana, a costa enevoada e fria, parece ainda mais desolada. Mas temos o salão todo por nossa conta. As máquinas sorveram-nos uns euros. A mim, a dar conta dos recordes do Trivial Pursuit e a ele, nos quizzs de futebol. Mas o pior foi à noite. O Pedro, o mais velho, não sabia a letra todas do Parabéns a Você. Eu também não. A parte final foi arrrastada e murmurada. Depois, O Gonçalo levou uma eternidade a apagar as velas do bolo. Soprava, ria, soprava, ria mais e assim sucessivamente. Mas eu acho que ele gostou que eu deixasse que ele faltasse às aulas da parte da tarde. "Hmmmm, estou a sentir-me mais relaxado", disse-me no salão de jogos, "já vou poder encarar as aulas amanhã de outra forma..."

2004-05-06

Song of the day

The Man At The Top
de Bruce Springsteen

Here comes a fireman, here comes a cop
Here comes a wrench, here comes a car hop
Been going on forever, it ain't ever gonna stop
Everybody wants to be the man at the top

Everybody wants to be the man at the top
Everybody wants to be the man at the top
Aim your gun, son, and shoot your shot
Everybody wants to be the man at the top

Rich man, poor man, beggar man, thief
Doctor, lawyer, Indian chief
One thing in common they all got Everybody wants to be the man at the top

Man at the top says it's lonely up there
If it is man, I don't care
From the big white house to the parking lot
Everybody wants to be the man at the top

Here comes a banker, here comes a businessman
Here comes a kid with a guitar in his hand
Dreaming of his record in number-one spot
Everybody wants to be the man at the top


Lost Highways III

Não me lembro bem quando comecei a viajar, se foi no dia em que o meu pai comprou o grande e espaçoso Opel Kadett e iniciou peregrinações rurais e de fim de semana de Aveiro ao Luso— obrigando-nos a contar as bicicletas para não o chatearmos—, se foi quando aos quatro anos o acompanhei e à minha mãe de carro até à Suécia profunda, se foi a brincar com o volante de plástico de um amigo ou se de cada vez que abria a janela da casa de banho e escutava o som do comboio a fazer “trec, trec, trec”, a apitar junto ao cemitério e a entrar no túnel pelo qual abandonaria gloriosamente Aveiro. Só tinha tempo de abrir a janela a correr e ver, no espesso negro da noite, as luzes enfileiradas e em movimento das carruagens iluminadas. Viajar e a ânsia de, é algo de tão despretensioso que cabe a todas as classes sociais e etárias. Lembro-me do rapazinho de “Viagens com o Charley” de Steinbeck, observando uma carripana que daria a volta aos Estados Unidos e onde ele nunca poderia ir; Lembro-me de Paul Simon a cantar “The sound of the train in the distance”, do formigueiro nos pés que cada vez que saíamos de Aveiro às três da manhã para poder atingir Lagos às 11h00 e fugir ao trânsito de Lisboa, atafulhados com todo o tipo de panelas, tachos e sacos-cama. Uma vez o carro— um Citroen GS azul que subiu os Apeninos e se desfez em fumarada num vale tão afortunado que tinha um restaurantezinho de estrada ali mesmo— começou a largar fumo perto da Mealhada e eu pulei por cima dos meus irmãos na fuga mais rápida de dentro de uma viatura. Descobri cedo que as melhores jornadas, são as perdidas e nunca programadas, aquelas em que nos achamos a milhares de quilometros de casa, sem eira nem beira, a procurar uma justificação madura para estarmos ali. O local de fixação transitória pode ser um lago gelado dos Pirinéus, o chão da estação ferroviária de Copenhaga, uma estrada infestada de bandidos “maconheiros” em pleno sertão do Pernambuco, uma viagem de 35 horas descendo os trópicos do sul da India ou uma tasca de uma aldeia desertificada na estrada da Beira, onde terminamos a beber uma Sagres e a falar de futebol com dois velhos que jogam dominó numa mesa. Viajar começa por ser um capricho, transforma-se num vício e termina em necessidade. Há por aí muitas estradas ocultas e perdidas, que o Sol de Deus parece nunca ter alumiado e que a minha mochila me pede que eu conheça, os pés em formigueiro. Como me perguntava uma vez a minha mulher, os dois deitados lado a lado: “Tu não estás aqui pois não? Estás aonde?”

2004-05-05

It's cloudy outside and I'm feelin' blue

BLUE de Lucinda Williams

Go find a jukebox
And see what a quarter will do
I don't wanna talk
I just wanna go back to blue

Feeds me when I'm hungry
And quenches my thirst
Loves me when I'm lonely
And thinks of me first

Blue is the color of night
When the red sun disappears from the sky

Raven feathers shiny and black
A touch of blue glistening down her back

We don't talk about heaven
And we don't talk about hell
We've come to depend on
One another so damn well

So go to confession
Whatever gets you through
You can count your blessings
I'll just count on blue

Do álbum "Essence"

Célia, a menina de programa

“Cê tem 50 centavos?” A parede de som das colunas pegadas umas às outras debitando o som quase hipnótico do reggae, quase não me deixa ouvir o que aquela figura simpática franzina, morena, cabelo frizado e aloirado artificialmente , vestida com um top vermelho me quer dizer. Encostado ao balcão daquele clube ao ar livre, bem em frente à Praia da Ponta D’ Areia, São Luís do Maranhão, mergulhado numa multidão de negros e mulatos que abanam e agitam o corpo para a esquerda e para a direita, a um ritmo cadenciado, volto-me e tiro 50 centavos do bolso. “E...ehhh, se você quiser posso ficar com você”. O som está tão alto que mal entendo o que aquele ser pequenino e frágil, aparentando 15 ou 16 anos, me quer dizer. “Cê quer que eu fique com você?”
Não respondo. A jovem pousa a mão na anca, deixa ver os dentes brancos e diz: “Me paga uma cerveja, vai?”
Ao fim de alguns copos que aquecem ao calor húmido e tropical de São Luís, a menina impacienta-se. “Cê tá pensando que eu sou uma vagabunda? Não sou vagabunda, não, eu trabalho lá no bairro do Filipinho...” Então o que é que ela quer? “Quero te fazer bem, te dar um carinho, te mostrar São Luís, vou mostrar a cidade para você, te levo a minha casa...”
A conversa começa a prolongar-se. A menina agarra-me o rosto com as ambas as mãos e dá-me um beijo tão abrupto, extemporâneo e artificial que dou um passo para trás. “Que é que é isso? Você é “veado”? Ah não, você é “veado”! Dá uns passos para trás e depois, empurra-me: “Cê é “veado, não é”?
Digo que não mas não estou interessado. “Porquê?”, pergunta de mão na anca. Porque ela quer dinheiro. Se é esse o problema, posso dar-lhe dinheiro. De repente, chega um rapaz mulato que pretende falar com ela. É concerteza o “cafetão” (chulo). “Esse aí é meu sobrinho, viu, sei o que você está pensando mas ele não é meu namorado”.
Pergunto-lhe a idade. “Tenho 22 e me chamo de Célia”. Não acredito. “Tenho 22, cê não acredita?” Ofereço-me para comprar mais uma cerveja ou pagar-lhe o moto-taxi de volta para casa. Não, nunca irei para casa dela. “Cê ía conhecer minha família, ia ser bom”. Já de frente para as ondas mornas da Praia da Ponta D’Areia, compro-lhe umas uvas, dou-lhe dinheiro para ela poder regressar a casa e despeço-me. “Tem a certeza que não quer? Eu trago camisinha, vou com você para onde você está. Tem a certeza?” Mais um trago de cerveja e quero ir embora. “Olha só”, diz Célia, “olha só”. Abre os calções de ganga e mostra a penugem escura. “Tá vendo a “bucetinha” que você está perdendo?” Adeus Célia. Vejo-a tomar o capacete de um moto-taxista e desaparecer na noite na parte de trás do moto-taxi, por entre o ambiente febril do pós-festa de reggae.

2004-05-04

Canção do dia

Drunken Angel
De Lucinda Williams

(A canção foi composta por Lucinda em homenagem à memória de Blaze Foley, cantor de Austin, Texas, amigo de Townes Van Zandt, assassinado em 1989, aos 39 anos durante uma discussão com o filho de um amigo. Blaze Foley compôs "If I Could Only Fly", gravada por Merle Haggard e Willie Nelson e deixou uma única gravação, o álbum "Live At The Austin Outhouse", disponível na amazon.com

Sun came up, it was another day.
When the sun went you were blown away.
Why'd you let go of your guitar?
Why'd you ever let it go that far,
Drunken angel?

Coulda held on to that long smooth neck.
Let your hand remember every fret.
Fingers touching each shiny string.
But you let go of everything,
Drunken angel.

Drunken angel, you're on the other side.
Drunken angel, you're on the other side.

Followers would cling to you,
Hang around just to meet you.
Some threw roses at your feet,
Watched you pass, out on the street,
Drunken angel.

Feed you, and pay off all your debts,
Kiss your brow, taste your sweat.
Write about your soul, your guts.
Critisize you and wish you luck,
Drunken angel.

Drunken angel, you're on the other side.
Drunken angel, you're on the other side.

Some kind of saviour, singing the blues,
A derelict in your duct tape shoes.
Your orphan clothes and your long dark hair,
Looking like you didn't care,
Drunken angel.

Blood spilled out from the hole in your heart,
Over the strings of your guitar.
Worn down places in the wood,
The ones that made you feel so good,
Drunken angel.

Drunken angel, you're on the other side.
Drunken angel, you're on the other side.

Sun came up, it was another day.
When the sun went you were blown away.
Why'd you let go of your guitar?
Why'd you ever let it go that far,
Drunken angel?

Drunken angel.


Do álbum de Lucinda Williams
"Car Wheels On a Gravel Road"

Memórias da Zambujeira II

Acordo com as vozes de um grupo à procura de um Jorge: “Ouve, o Jorge está aí?” Responde uma rapariga: “Esquece o Jorge, o Jorge ‘tá muita mal”. Voz de um rapaz: “Ouve, o Jorge é que tem as chaves do carro, achas que ele sabe onde estão as chaves do carro?” Responde a rapariga: “Ouve, o Jorge mesmo que leve um monte de estaladas não diz coisa com coisa”. Voz cada vez mais desesperada do jovem: “Ele não sabe onde ‘tá o carro?”. A rapariga: “O Jorge? Ele não sabe onde está a tenda”. Pergunta do rapaz: “Qual tenda?” Resposta da jovem: “Esta tenda, estúpido”.

Memórias da Zambujeira I

Bem perto do meu igloo, ouço uma rapariga chorar, um choro nasalado, como se estivesse constipada. “Miguel, tá, eu estava a tripar, Miguel, és o meu único amigo”. Damos uma volta no colchão tentando desesperadamente dormir. “Miguel, preciso de uma coca-cola, eu hoje ainda não bebi uma coca-cola, eu vivo bem com um litro e meio de coca-cola por dia...” Miguel, quem quer que seja, fala baixinho e tenta acalmá-la:“Ouve, tenta esquecer...” A voz da rapariga volta a soar chorosa: “Miguel, vais ter que me deixar dormir na tua tenda...” Miguel pergunta: “E o Ricardo?” Responde a rapariga: “Ouve, esquece, o Ricardo está na nossa tenda com outra chavala. Eu acho que ele já não gosta de mim, estás a ver. Ouve Miguel, arranja-me uma coca-cola. Se eu beber uma coca-cola, fico melhor...”

2004-05-03

Canção do dia

You're Missing
(Bruce Springsteen)


Shirts in the closet, shoes in the hall
Mama's in the kitchen, baby and all
Everything is everything
Everything is everything
But you're missing
Coffee cups on the counter, jackets on the chair
Papers on the doorstep, but you're not there
Everything is everything
Everything is everything
But you're missing
Pictures on the nightstand, TV's on in the den
Your house is waiting, your house is waiting
For you to walk in, for you to walk in
But you're missing, when I shut out the lights
You're missing, when I close my eyes
You're missing, when I see the sun rise
You're missing
Children are asking if it's alright
Will you be in our arms tonight?
Morning is morning, the evening falls I got
Too much room in my bed, to many phone calls
How's everything, everything?
Everything, everything
You're missing, you're missing
God's drifting in heaven, devil's in the mailbox
I got dust on my shoes, nothing but teardrops

Do álbum "The Rising" (2002)
Sony, distri. Sony

O minuto 87 e o golo que caíu do Céu

Aquele golo veio do nada, do Céu porventura. Quero dizer, estavamos todos a voltar a acreditar um bocadinho, é certo. O Tiago, muito debilitado, ainda tivera um fogacho efémero em frente à baliza do Ricardo, o Fernando Aguiar entrara pela grande aérea como um caterpillar aos ziguezagues e quase punha a bola lá dentro...Mas a malta desanimava. Um frio mais outonal que primaveril sacudia-nos as costas. Um homem, ao meu lado, ía até a uma zona gradeada a verde onde, sempre que o Sporting marcava um canto, se colocava aparentemente a observar o prédio em frente. Não queria ver. Eu vi tudo. Cada defesa do Moreira, cada arrepio, cada soluço. Quando o Moreira socou aquela bola para cima da trave, os rostos brancos à minha volta pareciam retirados de um frigorífico. Colocavam-se as mãos ao céu, batia-se com os pés nas cadeiras. Praguejava-se. No futebol pragueja-se muito: "Foda-se", " Vai caralho", " Filho de uma grand'a puta!", "foi falta, cabrão! Um membro da claque "Diabos Vermelhos" batia ruidosamente com o pau da bandeira no assento em frente. Poucos permaneciam sentados.
E de repente, foi uma luz, um relâmpago, foram segundos que mediaram entre o tédio e a euforia total. É difícil descrever o que um pontapé fulminante e de fora da rua pode fazer a umas duas mil pessoas vestidas de encarnado cercadas de verde por todo o lado. O golo foi demasiado bonito e arrebatador, um misto de pura arte e tiro certeiro. Quando terá durado aquele momento? Quando tempo mediou o simples movimento do Geovanni a preparar a chuteira e o pormenor delicioso da bola a entrar no canto direito, o Ricardo estirado inútilmente e sem glória? Não sei. Só sei que tudo o resto foi e é felicidade pura. Não se pensa, não se raciocina, pula-se, abraça-se quem está ao lado, há quem se atire para o chão, as goelas abertas, os braços em posição de Cristo: "Goooooooooolo!!!! Foi golo, caralho! Foi golo!" De repente, somos todos irmãos naquela bancada, todos da mesma família. Abraço um fulano de blusão de ganga mais alto do que eu uns 10 centímetros que nunca vira na vida. Há três homens engachados num abraço fraternal, bem ao meu lado, enquanto pulam como crianças. De repente, somos todos crianças. Os jogadores correm para festejar connosco, com a família, que sim, nós somos a sua família, o seu clã de indefectíveis, vestindo as suas cores e gritando o seu nome. Os olhos lacrimejam, vejam lá, por causa de uma bola, de uns segundos. E, tal como chegou, a euforia assenta feita poeira e olhamos os de lá, os de verde, a outra família. Há crianças com cara de quem lhes acabou de roubar o jogo de Game Boy, olhando para os pai que olha para o céu, triste e carrancudo. Há homens que se levantam e começam a abandonar o estádio. Homens e mulheres vestidos de verde e branco deixam-se ficar sentados, entre o pasmo e a assunção da realidade, impotentes perante a verdade, a crueldade do placard electrónico que marca: Sporting-O-Benfica-1.
Cá do nosso lado estamos felizes. Agradecemos. Afinal, o golo caíu-nos do Céu aos 87 minutos. Foste tu, Feher?